A pandemia de covid-19 trouxe para a medicina e a ciência o maior desafio do século. Era uma guerra diária, em que se tentava de tudo para salvar vidas numa maratona contra o tempo. Profissionais de saúde, vestidos como astronautas, tiveram que escolher, entre os pacientes graves, quem teria uma chance de viver. Tornou-se impossível dar assistência digna a todos que chegavam em estado crítico nas emergências. A crise prolongada também levou funcionários de hospitais à morte contaminados. Outros tantos conviveram com a estafa física e mental. Para preservar a vida de familiares, muitos deles ficaram hospedados em hotéis.
O técnico em enfermagem do Hospital Regional da Asa Norte, Deny Veloso, 37 anos, trabalhou na linha de frente da covid-19, durante o período mais crítico da pandemia. "Um dos piores momentos foi quando estávamos com a equipe bastante reduzida e tivemos que escolher, entre dois pacientes em parada cardiopulmonar ao mesmo tempo, qual iríamos tentar reanimar. No fim, ambos acabaram falecendo", lamentou. "Também me dói saber que os familiares daquelas pessoas não puderam se despedir da forma correta devido aos protocolos de segurança", acrescentou.
Veloso estava no HRAN e foi o primeiro a atender a um paciente com covid-19 no DF. "Isso criou um clima de tensão entre os trabalhadores da unidade. Depois, veio o lockdown e a confusão se instalou. Foi uma loucura, insanidade total. Primeiro pela questão de Equipamento de Proteção Individual (EPI), não havia no mercado os equipamentos corretos e nem suficientes para todo mundo utilizar", lamentou. "Houve um dia em que fiz um atendimento com máscara cirúrgica porque não tinha mais a N95, que era a adequada", acrescentou.
Saiba Mais
Coincidentemente, o filho mais novo veio ao mundo nessa época. "Ele nasceu no meio da pandemia, em abril de 2020. Antes disso, eu estava tranquilo. Depois, o meu maior medo era de que ele pegasse a doença", afirmou. O servidor do HRAN se afastou de parentes. Mesmo assim, o pai se contaminou e por pouco não foi entubado. Na época, a covid-19 tinha um ciclo de três semanas, e a segunda era a fase mais grave. "Meu pai foi internado no oitavo dia de contaminação. Recebi uma ligação informando que ele estava mal. Queriam interná-lo numa UPA, mas pedi que o trouxessem ao HRAN, pois, se ele precisasse ser entubado, queria estar perto para massageá-lo, caso sofresse alguma parada (cardíaca). Graças a Deus deu tudo certo", contou.
Ele disse que todo aquele sofrimento o fez evoluir quanto à dedicação a sua família. "Depois que acabou a pandemia, a única coisa que eu queria era ser o melhor pai para os meus filhos. Só isso. Viver com a minha família o máximo que eu puder", afirmou.
Avassalador
Clarice Park, médica-assistente da equipe da doutora Ludhmila Hajjar, esteve na linha de frente do combate à covid-19 no Hospital DF Star. "Foi uma situação completamente inédita em que, inicialmente, a gente não sabia muito bem com o que estava lidando", ressaltou. "Foram momentos extremamente difíceis, em que a gente teve que lidar com muitos pacientes graves. Algo completamente avassalador em que, mesmo com todos os esforços possíveis e disponíveis, muitas vidas foram perdidas", lamentou.
Além da preocupação com os pacientes, Clarice também destacou os excessos sofridos pelos profissionais de saúde. "A gente viu muitos sobrecarregados, principalmente no aspecto emocional e no estado psicológico. Era um momento de muito estresse e preocupação, não só com a vida do próximo, mas com a própria vida e com a dos familiares. Foi um período delicado para todos os profissionais de saúde", avaliou.
Apesar disso, a médica comentou que também houve situações positivamente marcantes. "A gente conseguiu salvar pessoas que ficaram em uma situação extremamente grave, em ventilação mecânica, durante até 90 dias e acabaram saindo vivas", comemorou. "Muitas ainda têm contato com a gente. São pacientes que ligam, mandam uma mensagem ou uma foto do filho ou do neto que nasceu", mencionou.
Clarice disse que tem muito receio de que pandemias por outras doenças possam surgir. "O aquecimento global está cada vez mais intenso e acelerado, e as pessoas não têm senso de preservação ecológica e da vida", analisou. "Não creio que foi a última pandemia. Não, mesmo. Estamos vivendo mudanças climáticas muito importantes, que afetarão a vida de muitos", alertou.
Ansiedade
A enfermeira Denise Tavares, 43, estava no HRAN quando a pandemia estourou. Ao Correio, ela contou que a covid-19 pegou todos de surpresa. "Não sabíamos, de fato, com o que estávamos lidando. Medo, angústia e ansiedade foram alguns dos sentimentos que, nós, profissionais de enfermagem, vivemos durante a pandemia", relatou. "Tínhamos o medo de infectar os nossos familiares. Muitos não iam para casa porque moravam com idosos e crianças ou pessoas com doenças crônicas", revelou.
Entre os momentos marcantes, Denise recordou a perda do primeiro colega de trabalho para o coronavírus. "Lembro também de um paciente que veio a óbito e, na mesma semana, a filha dele também estava internada e muito aflita. Dizia que não podia morrer. Tinha uma filha de 8 meses. No outro dia, ela foi entubada e depois de vários dias lutando para vencer o vírus, morreu", emocionou-se a enfermeira.
Houve também quem "caiu de paraquedas" na guerra contra a covid-19. O técnico em enfermagem Ludgero Bastos, 51, trabalhava no Hospital de Base e, em 2020, pediu transferência para o HRAN. "Quando me apresentei à gerência de enfermagem, me convidaram para colaborar no pronto-socorro, porque estava havendo uma demanda muito grande. Caí em um cenário que nunca tinha visto nos meus 20 anos de carreira", disse.
"Muitas pessoas sendo entubadas 24 horas por dia. Houve plantões em que a gente passou a madrugada entubando pacientes. Enquanto estávamos com um paciente, olhava para o lado e tinha outro doente já em fadiga respiratória", descreveu. "Você chegava àquele paciente em crise respiratória bem aguda, com todos os critérios para ser entubado, e a gente falava para ele: "vamos ter que entubar o senhor'. Aí, essa pessoa perguntava se podia ligar para um parente. Imagina receber uma ligação, 3h ou 4h da manhã, de um ente querido que está no hospital? Durante o dia uma chamada assim é terrível, mas, de madrugada, então! E ainda mais para falar que vai ser entubada", acrescentou Ludgero.
Segundo ele, momentos assim o fizeram perceber que a pandemia era grave. "Muitas dessas ligações telefônicas — tenho certeza! — foram a última ligação do doente vivo a um familiar. Também perdemos colegas para a covid-19. Vi muitas pessoas, muitas mesmo, serem levadas pela doença", lamentou.
O profissional da saúde contou que tinha que se manter forte, pois aquele era seu trabalho. "Só que você é um ser humano também. Nunca cheguei a me isolar em um canto para chorar, mas já dei aquela baqueada e necessitei de uns minutos para dar uma respirada mais funda, antes de continuar", confessou.
Uma entre tantas lembranças tristes, foi o caso de uma jovem que, infelizmente, acabou morrendo. "Ela pediu que eu dissesse para a família dela, caso algo acontecesse, que ela os amava. Infelizmente, não tive essa oportunidade porque nunca tive contato com os familiares. Isso me fez pensar: e se fosse eu no lugar dela?. Esse tipo de situação deixa a gente arrasado", relatou Ludgero.