Psicológica, verbal, patrimonial ou física. A luta contra a violência doméstica e o feminicídio transcende o desejo da vítima em sair da situação. Para além da coragem, é necessária a presença do Estado, a disponibilização dos canais de atendimento, da polícia e da Justiça. Nesta reportagem, o Correio ouviu relatos de mulheres que conviveram com companheiros agressores por anos, mas conseguiram sair vivas e mais fortes da situação. Na alma, elas carregam as cicatrizes.
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As marcas pelo corpo de Ana Paula Tavares, 45 anos, depois de viver uma relação abusiva, se mantêm depois de quase 20 anos. A cabeleireira veio do Piauí para tentar a vida na capital do país, com o marido e as duas filhas de um relacionamento anterior. Ao chegar a São Sebastião, se viu obrigada a virar dona de casa, pois tinha que cuidar das crianças pequenas, enquanto o marido trabalhava.
Como boa parte das mulheres brasileiras, Ana era mantida financeiramente pelo marido, com quem se relacionou por cinco anos. Segundo ela, a dependência despertou comportamentos abusivos por parte dele. "Era comum as discussões mais acaloradas, os empurrões, os xingamentos. Em 2004, eu não tinha esse conhecimento de relacionamento abusivo e suas formas de apresentação, pois estava apaixonada e a dependência financeira fazia eu me manter no casamento", desabafa.
Assim como em muitos casos, Ana não reconheceu de imediato que era vítima de violência doméstica. No DF, 13.519 mulheres sofreram algum tipo de agressão no âmbito da Lei Maria da Penha em 2023, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). O número equivale aos meses de janeiro a setembro do ano passado e é maior que o de ocorrências registradas em todo 2022 (12.722).
Por ser aparentemente um homem "tranquilo", Ana não esperava que as discussões pudessem desencadear em um atentado contra a vida. Em 2004, ela viu a vida passar diante dos olhos, quando foi esfaqueada. "Estávamos voltando de um churrasco e, mais uma vez, discutindo. Cheguei em casa e fui ao banheiro e ele veio atrás de mim e me deu três facadas. Depois, me levou para a cama e me esfaqueou mais duas vezes. Tudo isso na frente das minhas filhas. Os vizinhos ouviram os gritos e chamaram a polícia", relatou.
O agressor foi preso e Ana ficou internada por 28 dias entre a vida e a morte. Doze anos depois de quase ter a vida ceifada, Ana Paula Tavares se casou novamente e vive com as filhas, o marido e dois netos, em Formosa (GO). "Desde o dia do ocorrido nunca mais tive contato com o ex. Fiz cirurgias reparadoras por causa das cicatrizes. Foi necessário seguir em frente, pois eu tinha as meninas para cuidar." Ela destaca ainda o apoio familiar como primordial para superar os traumas.
Profissional do ramo da beleza, a cabeleireira faz parte do Projeto Realize, iniciativa voltada para desenvolver a autonomia econômica de mulheres. "Queria falar para as mulheres que passam pelo o que passei para não se acovardarem. Devem denunciar, sim, procurar ajuda no governo ou na família e não devem dar uma segunda chance, pois a pessoa não vai mudar", orienta.
No começo, flores
"No início ele era carinhoso e me tratava bem". É o que relata Gabriela* (nome fictício, a pedido da entrevistada). Mãe de dois filhos, foi casada com seu agressor durante nove anos e sofreu violência durante todo o casamento. Em seis meses de relacionamento, Gabriela viu a outra face do marido. "Os ataques eram psicológicos e físicos", comenta.
Mesmo com as agressões recorrentes, ela confessa não ter tido forças para sair da relação. "Tinha muito medo de me separar por causa das ameaças. Ele dizia que me mataria. É uma prisão psicológica muito grande. Tinha medo de sair e enfrentar a vida. Sem contar no receio de não conseguir criar meus filhos, apesar de que eu era quem sustentava as crianças", afirma.
Gabriela só resolveu tomar alguma atitude ao notar que a situação afetava os filhos, que presenciavam as agressões. "Principalmente o mais velho. Aquilo estava acabando com ele. Senti mais a dor dele que a minha. Pedi muito a Deus para me tirar daquele sofrimento. Além da minha vida estar destruída, a das crianças também estavam indo para o mesmo caminho", descreve.
Em 2014, Gabriela resolveu se separar depois de um episódio macabro. "Ele chegou em casa muito agressivo, brigando e começou a me bater. Lutei muito por minha vida. Passei a noite inteira sendo ameaçada com uma faca. Por fim, ele pegou uma arma de fogo e apontou para meu rosto. Tirava as munições e colocava de volta. Foi quando percebi que se não tomasse alguma atitude, aquele cara iria tirar minha vida", destaca.
Reconstruir o tempo perdido trouxe dificuldades e aflições, mas vitória ao final. "Tinha muita insegurança com tudo. Passei por grandes apertos, mas consegui. Hoje estou aqui para contar minha história." Atualmente, Gabriela trabalha como cuidadora de idosos, comprou o carro e a casa próprios e sente-se como uma sobrevivente.
Problemas e soluções
No ano passado, o DF alcançou a marca histórica de feminicídios. Foram 34 casos. Neste ano, em 17 dias, três mulheres foram assassinadas por questões de gênero. Para explicar o porquê dos altos números, o Correio conversou com a especialista em direito da mulher e de gênero, Cristina Tubino. Ela destacou como uma das causas a ineficácia das medidas protetivas aplicadas de forma padronizada. "Há casos em que as mulheres sequer tiveram tempo ou orientação de buscar tais medidas." explica.
Com intuito de coibir o crime, Cristina cita ações que podem ser cruciais. "Não basta que sejam medidas mais rígidas, precisamos dar a essas mulheres meios e caminhos para elas se afastarem de seus agressores e se livrarem do ciclo da violência, como formação, auxílios e prioridades em cargos e empregos", descreve.
O Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam) é um dos principais meios de atuação no combate à violência doméstica no DF. Localizado em quatro pontos estratégicos, o Ceam oferece acolhimento, acompanhamento social, psicológico, pedagógico e de orientação jurídica às vítimas de violência de gênero. Com o intuito de preservar e ajudar mulheres a superar as situações de violações aos seus direitos.
Chefe do centro especializado na estação de metrô 102 Sul, a neurocientista Zaika Capita explica que para combater a violência contra a mulher é necessário uma série de ações conjuntas, que vão desde a escola até os lares. "Não podemos aceitar nenhum tipo de agressão, seja verbal ou física. Não é porque o marido teve um dia cansativo que deve descontar em você. Busque ajuda. O silêncio de muitas têm custado a vida, finaliza.
Muitas vítimas têm receio de ficarem desamparadas e sem condições de custear os filhos, após a separação. Pensando nisso, a Secretaria da Mulher (SMDF) planeja implementar cursos que estejam alinhados com o desenvolvimento econômico local, buscando integrar as vítimas ao mercado de trabalho. Além de contar com alguns órgãos do governo para empregá-las. Atualmente, as entidades proporcionaram emprego formal com carteira assinada a 45 mulheres.
Casa da Mulher Brasileira
Com atendimento 24h por dia durante 7 dias, a Casa da Mulher Brasileira, localizada na Ceilândia, tem o objetivo de atender vítimas de violência doméstica. O local também conta com espaço reservado para as filhas de qualquer idade e filhos até os 12 anos, que podem se manter no alojamento junto com a mãe por 48 horas.
"A casa oferece também para as que precisam de uma assistência social, assistência psicológica, existem cursos ofertados para as mulheres que desejam aprender novas profissões que busca um emprego", ressalta a secretária de Estado da Mulher, Gisele Ferreira.
A Secretaria de Estado de Segurança Pública (SSP/DF) disponibiliza, desde 2017, o aplicativo Viva Flor, direcionado para mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. O uso do aplicativo permite acionar serviços de emergência policiais no DF.
Palavra do especialista
O Distrito Federal conta com uma ampla Rede de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, criada por meio de , composta por membros do Poder Público, entre eles órgãos do Poder Executivo, Legislativo, Judiciário, além do Ministério Público e Defensoria Pública e também a sociedade civil. Sem embargo das constantes necessidades de aperfeiçoamento e evolução, a rede do Distrito Federal mostra uma integração exemplar, e serve de modelo para outras unidades da Federação.
A rede enfrentamento à violência doméstica do Distrito Federal contempla também as Forças de Segurança Pública, que podem ser acionadas por diversos canais, a exemplo do 190 (Polícia Militar) e 197 (Polícia Civil), além das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs I e II), e demais delegacias localizadas nas diversas regiões administrativas, estando todas elas aptas a realizar o atendimento especializado. Afora isso, o registro de ocorrência de violência doméstica ainda pode ser feito por meio da Delegacia Eletrônica, no site da PCDF (https://www.pcdf.df.gov.br/servicos/delegacia-eletronica). Cita-se também o canal do 180, que dá acesso à Central de atendimento à mulher.
Em caso de eventual situação de violência, seja de caráter físico, moral, psicológico, patrimonial ou sexual, a vítima ou qualquer pessoa que presenciar ou tiver notícia do fato, pode acionar os referidos canais, sendo que, em caso de urgência, de violência atual, o canal adequado é o 190 (Polícia Militar). Uma vez acionada a Polícia Militar, uma equipe de policiais se dirige ao endereço informado, e, observando um protocolo próprio, encaminhará o caso à delegacia a área, onde, a depender do caso, será registrada a ocorrência policial, com ou sem flagrante.
Em qualquer uma das delegacias do Distrito Federal, a mulher vítima da violência doméstica receberá atendimento, onde depois de preencher o formulário de risco, poderá postular medidas protetivas de urgência, a serem encaminhadas ao Juizado de Violência Doméstica competente, em procedimento que, atualmente, é totalmente informatizado, e, portanto, bastante célere. No geral, em menos de 24 horas, as medidas protetivas são apreciadas e deferidas pelo Poder Judiciário. As medidas protetivas são aquelas previstas na Lei Maria da Penha, e podem incluir o afastamento do lar pelo agressor, a imposição de distanciamento mínimo, proibição de contato, e até restrição ao direito de visitas ao filho.
Para garantir o cumprimento das medidas protetivas de urgência, especialmente aquelas referentes ao distanciamento mínimo, o Distrito Federal conta com o uso de tecnologia, disponibilizando, por intermédio da SSP-DF, o monitoramento do agressor pelo uso de tornozeleira eletrônica, bem como da própria vítima, pela inclusão no Programa de Segurança Preventiva Viva Flor (SSP-DF), que tem como objetivo garantir as mulheres vitimas de violencia domestica e familiar, em situacao de risco extremo, o atendimento prioritario de emergencia da Policia Militar, por meio da tecnologia de georreferenciamento, por meio do acionamento remoto de dispositivo eletrônico que lhe é entregue, mediante autorização judicial ou da autoridade policial, no caso das DEAMs.
Se tudo ocorrer dentro da normalidade, todo esse procedimento, desde o acionamento da PMDF, pelo 190, até o deferimento das medidas protetiva pelo Judiciário, não demora mais do que 24 horas, com a possibilidade de, em risco extremo, a mulher ser incluída no Programa Viva Flor já no ato do registro da ocorrência, por autorização do próprio delegado.
Os casos de reiteração de ocorrências, pela mesma vítima e contra o mesmo agressor, encontram
explicação no fato de que as medidas protetivas e o prosseguimento da ação penal, no geral, dependem da vontade da vítima, que pode estar inserida numa espiral de violência da qual nem sempre é fácil sair, pelos mais diversos motivos de ordem social, cultural, e financeira. Então, a mesma vítima pode desistir ou renunciar a procedimentos policiais a ações penais sucessivamente, dando margem às várias reincidências do agressor, e possível impunidade. Mudar esse cenário dependeria, em um primeiro aspecto, de alterações legislativas de possível endurecimento das medidas cautelares, a despeito da vontade da vítima.
Para além disso, considerando que a violência contra mulheres em ambiente doméstico, no geral, ocorrem na clandestinidade, a mudança esse quadro apresenta-se como um verdadeiro desafio, não apenas para os órgãos de segurança pública, mas para todo o Poder Público e para a sociedade como um todo, tendo como pressuposto uma verdadeira mudança cultural, possível a partir da educação e da informação, ações que tem sido insistentemente promovidas pelo Governo do Distrito Federal, de forma integrada entre as diversas Pastas.
Fonte: Delegada Regilene Siqueira Rozal, subsecretária de Prevenção à Criminalidade da SSP/DF
Colaborou Darcianne Diogo
*Estagiários sob a supervisão de Márcia Machado
Feminicídios de 2024
Taynara Kellen, 26 anos, assassinada
por Wesly Denny, 30. Feminicida
está preso.
Diana Faria Lima, 37 anos, assassinada por Kelsen Oliveira Macedo, 42. Feminicida está preso.
Antônia Maria da Silva Carvalho, 39 anos, assassinada por Francisco Farias da Silva, 46. Feminicida está preso.
Onde pedir ajuda
Ligue 190 - Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF)
Uma viatura é enviada imediatamente até o local. Serviço disponível 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.
Ligue 197 - Polícia Civil do DF (PCDF)
E-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br
Contato: (61) 98626-1197
Site: www.pcdf.df.gov.br/servicos/197/violencia-contra-mulher
Ligue 180
Central de Atendimento à Mulher, canal da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, além de reclamações, sugestões e elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A denúncia pode ser feita de forma anônima, 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.
Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam): funcionamento 24 horas por dia
Deam 1: Atende todo o DF, exceto Ceilândia
Endereço: EQS 204/205, Asa Sul.
Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673
E-mail: deam_sa@pcdf.df.gov.br
Deam 2: Atende Ceilândia
Endereço: St. M QNM 2, Ceilândia
Contatos: 3207-7391 / 3207-7408 / 3207-7438