Mirian, Jeane, Regiane, Denise… poucas linhas não dariam conta de listar a quantidade de mulheres assassinadas em razão da violência de gênero. Até agora, o Distrito Federal contabilizou 32 feminicídios — o maior registro anual dos últimos cinco anos (ver quadro) e um aumento de 88,2% em comparação a 2022, quando foram registrados 17 casos. Os dados são do painel Monitoramento do Feminicídio no DF, da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF).
Se para a sociedade os números chocam, para as mulheres são a confirmação de que, nem em casa, é possível sentirem-se seguras. Dos 32 feminicídios, 28 foram cometidos por maridos, namorados ou ex-companheiros. Em novembro, Sofia Antunes e Brenda Michnik, ambas de 20 anos, foram assassinadas por seus parceiros, em Planaltina. Entre um caso e outro, a diferença foi de três dias.
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Além dos sonhos não realizados, as mulheres também deixam o vazio para aqueles que ficam. O ódio dos feminicidas respinga em filhos, mães, irmãos e amigos. Neste ano, o crime deixou o rastro de 67 órfãos, dos quais 44 são menores de idade. Na maior parte dos casos, o meio empregado foi arma branca, comum nos contextos de violência contra a mulher, segundo Janaína Penalva, professora de direito constitucional e teoria feminista, da Universidade de Brasília (UnB). "Os agressores usam armas brancas, porque precisam marcar o corpo das mulheres, precisam deixar em sua carne o poder de morte que possuem. Não é uma coincidência e nem uma demonstração de que o crime aconteceu em casa, mas uma inscrição da violência de gênero", destacou.
Redes de proteção insuficientes são, para Janaína, uma das razões pelas quais o número de casos é tão alarmante. Como exemplo, cita a falta de equipe multiprofissional nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAMs), visando prevenir a escalada de violência quando as mulheres estão ameaçadas. Outro fator de relevância é o perfil conservador da população do DF. "O exercício da liberdade sexual e a autonomia no campo das relações afetivas é justificativa comum para a violência contra as mulheres. A moral conservadora acredita que a vida é melhor quando elas estão em posições tradicionais de submissão e subordinação. Quando elas não aceitam essa condição e desafiam a ordem patriarcal, são mortas", explicou a professora.
"Saudade da companhia"
Quando a dona de casa Ana Maria Ferreira, 38, recebeu a notícia do assassinato da irmã, não teve dúvidas de quem estaria por trás do crime, ocorrido em 2021. Isabel Ferreira, 37, morreu após ser atingida com uma facada no tronco, em casa, na Ceilândia. Deixou três filhos. O marido, Marcos Soares Pereira, 36, foi preso em flagrante. Natural do Maranhão, a auxiliar de limpeza era proibida de entrar em contato com os parentes e tinha o celular rastreado pelo agressor. "Ele não a deixava se aproximar. Então, ela só ligava para a gente escondido e rápido. Ele a manipulava para que ela sentisse culpa, mesmo sendo agredida", lamentou a irmã mais nova.
A dona de casa, que também sentiu na pele a dor de uma relação abusiva, sentia-se inconformada por não conseguir tirar a irmã desse contexto. "Eu também morava com um homem violento, mas, na primeira agressão, não quis mais dar continuidade no relacionamento. Eu dizia a ela que nosso pai nunca bateu na gente, então, eu não aceitaria que meu marido fizesse isso comigo", recordou.
Com o assassinato de Isabel, Ana Maria entrou em depressão. "Foi como se tivessem enterrado parte de mim". Mesmo assim, guarda com carinho as boas memórias que tem da irmã. "Sinto saudade da companhia dela, que era tão carinhosa antes de conhecer seu agressor. Ela era alegre, boa mãe e muito trabalhadora. Que Deus a tenha em um bom lugar", finalizou a irmã, saudosa.
Tratamento rude
Quando Carla (nome fictício), 56, se casou, em 1989, as promessas não poderiam ser melhores: casa própria, filhos, autonomia para trabalhar e um parceiro leal. Apesar das discussões "típicas de todo casal", os dois primeiros anos de união foram "bons", com a conclusão da graduação em letras e com o nascimento da primeira filha. À medida que os trabalhos domésticos aumentavam, a profissão de Carla, fora de casa, era colocada em segundo plano. "Ele insistia para que eu, grávida do segundo filho, abdicasse das salas de aula para me dedicar somente ao lar e às crianças. Aos poucos, começou a me tratar de forma rude. Por receio de perdê-lo, saí do emprego", detalhou.
A primeira agressão ocorreu quando ela descobriu uma traição e tirou satisfações com o marido. "Bêbado, ele me empurrou e jogou o telefone em mim. No dia seguinte, chorou, disse estar arrependido e prometeu jamais fazer o mesmo. Hoje, percebo que aquele momento marcou o início de um ciclo de violência que durou por quase 15 anos", relatou. Com o passar dos anos, Carla foi humilhada, ameaçada, agredida e estuprada. "As traições tornaram-se o de menos", ela resumiu.
De família religiosa e conservadora, chegou a desabafar com a mãe sobre a rotina de medo que vivia, pediu ajuda para se separar, mas não teve apoio. "Na frente das pessoas, ele agia normalmente. Em casa, dizia que, se eu me divorciasse, mataria a mim e a minha família. Um dia, tentou me estrangular na cozinha", recordou. Mas, com o incentivo dos filhos e de uma antiga amiga, conseguiu dar fim à relação. Aos poucos, se fortaleceu. Voltou a trabalhar e desenvolveu sua independência. "Acredito que a chave para se livrar de uma situação de violência é ter autonomia financeira. Porém, o acolhimento da família faz toda a diferença", concluiu.
Saiba Mais
Três perguntas para
Giselle Ferreira, secretária de Estado da Mulher
1) Neste ano, tivemos um salto nos casos de feminicídio, 88,2% a mais do que em 2022. O que explica o aumento? Em que o Estado falhou?
Não é uma resposta simples. Diversos fatores devem ser levados em consideração. Diante deste aumento expressivo de casos, desde fevereiro, a Secretaria da Mulher, em parceria com diversas secretarias, atua em parceria com representantes do Judiciário e da sociedade civil em busca de soluções para o enfrentamento ao tema. A força-tarefa, criada em março, resultou na proposição e regulamentação de leis voltadas para o acolhimento de vítimas e de órfãos do feminicídio.
Políticas de conscientização e educação ajudam a combater a cultura de violência contra as mulheres e a promover uma maior conscientização sobre o feminicídio. Isso inclui campanhas de sensibilização, programas educacionais nas escolas e treinamento de profissionais de saúde, educação e justiça para identificar e lidar com casos de violência doméstica.
Recentemente, foi criada a Rede Distrital de Proteção aos Órfãos do Feminicídio, com o objetivo de oferecer políticas de atenção para crianças e adolescentes dependentes de mulheres assassinadas em contexto de violência de gênero.
Em breve, serão inauguradas quatro unidades da Casa da Mulher Brasileira (CMB) para atender as populações de São Sebastião, Recanto das Emas, Sobradinho II e Sol Nascente. Nos espaços, as vítimas receberão acolhimento e terão acesso a cursos profissionalizantes e de capacitação. Já há uma unidade da CMB em funcionamento, em Ceilândia. Só neste ano, foram mais de 12 mil atendimentos realizados.
2) Como a senhora avalia as medidas do governo, em 2023, referentes ao combate da violência contra a mulher?
O Governo do Distrito Federal não mede esforços para desenvolver políticas públicas de proteção e acolhimento às vítimas em situação de vulnerabilidade e prevenção à violência doméstica. A Secretaria da Mulher segue investindo em campanhas de conscientização da população sobre a importância em comunicar esses crimes.
O retorno das ações conduzidas pela pasta tem sido positivo e já resultou em aumento, neste ano, de 37% nas denúncias. Nós vemos que os equipamentos públicos estão sendo mais procurados e os canais de atendimento estão mais acessíveis. Percebemos que quando a mulher tem informação a chance dela sair do ciclo da violência é maior.
Além disso, o DF conta com diversos mecanismos de denúncia de casos de violência doméstica. Uma possibilidade é fazer a comunicação dos crimes nas duas unidades da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), localizadas no centro de Ceilândia e na Asa Sul. Elas funcionam 24h por dia. As delegacias circunscricionais também contam com seções de atendimento à mulher.
A Polícia Civil do DF (PCDF) também disponibiliza o registro de ocorrência por meio da Maria da Penha Online. Na plataforma, a comunicante pode enviar provas com fotos, vídeos e requerer acolhimento. Além disso, as comunicações podem ser feitas por meio dos seguintes canais:190, da Polícia Militar; 197, opção 0 (zero), para denúncia anônima; e 180 , para orientações.
Só no ano passado, a corporação da PMDF registrou 19.383 visitas familiares com objetivo de conscientizar e encorajar vítimas a registrarem ocorrências. O trabalho também ajuda a prevenir, inibir e interromper o ciclo de violência.
3) Qual a expectativa para 2024, no que tange à criação de projetos relacionados a esse tipo de violência?
Continuaremos trabalhando, tanto em projetos educacionais, como em campanhas informativas e, principalmente, com políticas públicas para a independência econômica das mulheres, capacitação profissional e acolhimento. Além de aprimorar a legislação vigente para que a proteção às vítimas e seus familiares, como os órfãos, seja prioridade. Já fizemos muito, hoje não há no DF impunidade aos agressores, mas faremos ainda mais. Nossa meta é "nenhuma a menos".
Palavra de especialista
A Justiça tem trabalhado diuturnamente para a eliminação de todas as formas de violências contra as mulheres. Dados estatísticos do TJDFT apontam que, na comparação do período de janeiro a julho de 2022 para janeiro a julho de 2023, houve aumento de 11,5% no ingresso de novos casos nos 20 Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no DF. De janeiro a outubro de 2023 foram concedidas (integralmente ou em parte) 16.070 medidas protetivas de urgência. Apenas de janeiro a novembro de 2023, o Núcleo de Audiências de Custódia (NAC) decretou 174 prisões preventivas, que provavelmente evitaram outras tantas mortes.
Tem-se buscado cada vez maior integração operacional do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública, Assistência Social, Saúde, Educação, Trabalho e Habitação. São diversas ações sendo realizadas a todo momento em todo o Distrito Federal.
De acordo com levantamento realizado em outubro/2023, segundo dados repassados pela SSP/DF, 437 mulheres se encontravam incluídas no Programa Viva Flor. Outro Programa de grande eficiência é o DMPP, em parceria com a SSP/DF. Desde sua criação, já foram 560 monitorados entre mulheres e autores.
Também a longa parceria com a Polícia Militar por meio do PROVID (Policiamento Orientado à Prevenção da Violência) tem permitido o acompanhamento de casos críticos por equipes especializadas da PMDF, em todas as regiões administrativas do DF. É sempre importante ter em mente que a violência contra a mulher deve ser coibida pelo Estado, pela família e por toda a sociedade, e não se resolve apenas na seara criminal.
Analisada a série histórica de casos de feminicídio no DF (desde 2015), verifica-se que a motivação para o terrível crime está centrada em ciúmes (61% dos casos) e não aceitação do término do relacionamento (22%). Tais dados apontam para o machismo que ainda impera na nossa sociedade: homens se veem como superiores e legitimados a violar os corpos das mulheres, naturalizam inaceitáveis comportamentos sexistas e misóginos.
Para alterar esse cenário, são necessárias ações educacionais permanentes que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia. Nesse contexto, apenas no ano de 2023, ações do Núcleo Judiciário da Mulher do TJDFT no âmbito do Programa Maria da Penha Vai à Escola alcançaram cerca de 8 mil pessoas em formações, sempre na atuação preventiva.
Fabriziane Zapata, titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Riacho Fundo e coordenadora do Núcleo Judiciário da Mulher do TJDFT (NJM)
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