Um anestésico para animais de pequeno e grande porte se tornou matéria-prima para traficantes. O medicamento controlado cetamina (ketamina) passou a ser difundido como entorpecente em festas de alto padrão e para a aplicação de golpes, como o "boa noite, Cinderela". Uma megaoperação da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) colocou fim à principal quadrilha de fornecimento e distribuição ilegal da substância no país e prendeu oito pessoas. O esquema milionário contava com empresa de fachada, médicos veterinários, laranjas, traficantes e o dono de uma agropecuária.
Em 10 meses de investigação, policiais civis da Coordenação de Repressão às Drogas (Cord/PCDF) identificaram o planejamento da organização criminosa, que ia desde a cooptação de um médico veterinário para a protocolização dos pedidos no Ministério da Agricultura (Mapa) até a entrega da substância pelos Correios. O delegado Luiz Henrique Sampaio, coordenador da operação, explica que a apuração começou depois da prisão de um traficante de classe média alta acusado de vender cetamina em festas da capital.
Com a prisão do alvo, em março deste ano, a polícia descobriu que os anestésicos eram encomendados diretamente nas mãos de um traficante do Rio de Janeiro e entregues no prédio dele, em Brasília. Foram dezenas de pedidos e recebimento de pacotes, o que resultou em um fluxo financeiro de quase R$ 200 mil. "Investigamos o traficante do Rio e percebemos que o fluxo era muito maior e envolviam mais pessoas e até empresas", explica o delegado.
Segundo a polícia, a ketamina costuma ser vendida em festas de alto padrão, principalmente de música eletrônica. Cada ampola era comprada pelos acusados por R$ 90 a R$ 100 e revendida a traficantes locais por R$ 400. De acordo com as investigações, os medicamentos eram vendidos no mercado ilegal e parte deles acabou apreendido em ações realizadas pela Cord e 10ª Delegacia de Polícia (Lago Sul). Ao cliente físico, a substância chega solidificada ou pulverizada.
Encomenda
A empresa usada pelo grupo criminoso para a compra da substância é a Mariana da Silva Leme Agropecuária, fundada em novembro de 2021, com o único propósito de comercializar ilegalmente o medicamento controlado. De acordo com as investigações, a instituição de fachada foi aberta com o uso de documento falso e ficava localizada no Parque Residencial Casa Branca, no município de Suzano, em São Paulo.
Em uma das entregas de medicamento à empresa Mariana da Silva, a polícia conseguiu desvendar um esquema muito maior e descobriu que a falsa instituição estava ligada a outras três agropecuárias reais, sendo todas elas fundadas pelos mesmos sócios e contador. "Eram, na verdade, laranjas, que se passavam por outras pessoas para abrir empresas. Descobrimos que a Mariana fez um grande pedido e, no momento da entrega, foi indicado que deixasse os pacotes em uma das agropecuárias", afirmou o delegado Luiz.
A respectiva agropecuária, também situada em São Paulo, era uma das responsáveis por vender a substância em grandes quantidades e de forma descontrolada, sem seguir as regras determinadas pelo Ministério da Agricultura (Mapa).
O processo de aquisição e venda da cetamina envolve uma série de pré-requisitos, a começar pela pessoa responsável pelos pedidos. A regra é que apenas o médico veterinário desempenhe essa função. Para isso, a organização criminosa cooptou um profissional da área para efetuar o requerimento. Em troca do serviço, a pessoa ganhava R$ 3 mil por mês.
Marcos de Sá, chefe do serviço de fiscalização e coerção ao trânsito e comércio irregular do Mapa, explica que a substância só pode ser fabricada em estabelecimentos registrados. A agropecuária detinha o registro, mas o que chamou a atenção do próprio ministério foi a quantidade exorbitante de pedidos da cetamina. O Correio apurou que um dos técnicos adquiriu 9,4 mil frascos do anestésico a partir de janeiro de 2022. Outro vinha fazendo o pedido de 7 mil frascos desde julho de 2020.
"É preciso ter todo o registro da venda realizada, desde o estoque, recebimento e comercialização, e é o que não tinha. É um problema, justamente por ser um medicamento controlado. Quando há um desvio, pode ser prejudicial para a saúde humana. Então, com base no nosso monitoramento, descobrimos que o técnico fez um pedido com quantidade incompatível ao uso veterinário", detalhou Marcos.
Busca e apreensão
Nesta terça-feira (5/12), a PCDF, junto ao Ministério Público do DF (MPDFT) e ao Mapa, cumpriu 23 mandados de busca e apreensão em residências e comércios ligados à organização criminosa. Quatorze ordens judiciais foram cumpridas em São Paulo, cinco no Rio de Janeiro e quatro em Brasília. Seis pessoas, incluindo os laranjas das empresas, o contador, o traficante do Rio e a mulher, dono da agropecuária e técnico de veterinária, foram presos em razão de mandados de prisão. Outras duas foram detidas em flagrante com arma e drogas. A polícia apreendeu ainda cinco veículos e bloqueou, mediante ordem judicial, contas bancárias.
O perigo do queridinho das baladas
O Cetamin é um medicamento controlado e tem, na sua composição, a cetamina. Essa substância, quando desidratada, é vendida como droga e ganha a denominação de ketamina, ou key. O grama pode custar R$ 100.
De acordo com Eloisa Dutra Caldas, professora de toxicologia da Universidade de Brasília (UnB), o anestésico é largamente usado na medicina veterinária, que vem, desde a década de 1980, sendo desviada para o uso abusivo de pessoas, que usam a substância como psicoativo. "A droga proporciona uma alteração de consciência, mas uma dose muito alta pode causar complicações e até levar à morte", explica.
Eloísa também lembra que, como a droga é adquirida pelo usuário por meio do tráfico, não há um controle da composição daquilo que ele está usando. "Nem sempre o que é prometido é aquilo que tem na composição real do produto. Outro problema é a dosagem que tem no comprimido, que nem sempre é a mesma", alerta.
A ketamina age no organismo deprimindo o sistema nervoso. "Não há problemas relacionados ao uso crônico, mas sim ao uso agudo. Uma dose muito alta apenas pode causar complicações sérias", conclui a professora.
Colaborou Naum Giló
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