Tragédia na blitz

Dois inquéritos vão apurar morte de Islan

A primeira investigação é relativa ao flagrante do motorista, preso pelos crimes de tentativa de homicídio contra um PM e por embriaguez ao volante; e a segunda apura as circunstâncias da morte do passageiro. Família vê excesso da polícia

Após ser preso em flagrante por tentar fugir de uma blitz no Eixo Monumental e atropelar um policial militar, Raimundo Cleófas Alves Aristides Junior, 41 anos, teve a prisão convertida em preventiva pela Justiça, na manhã de ontem. Na madrugada do último domingo, o motorista rompeu o bloqueio policial. Para conter o veículo, os agentes atiraram, atingindo o passageiro Islan da Cruz Nogueira, 24 anos, que morreu no local. A Polícia Civil do DF abriu dois inquéritos e investiga o caso. Oito agentes envolvidos na ação foram afastados das funções e tiveram armas apreendidas. O corpo da vítima será velado nesta manhã.

Morador de São Sebastião, Islan vivia com o pai e trabalhava em dois empregos, como repositor em um supermercado e como aprendiz, em uma pizzaria, "bico" que conseguiu recentemente. Foi nesse último serviço que conheceu Raimundo. Na opinião dos pais da vítima, houve excesso e negligência por parte dos policiais militares, que ainda não entraram em contato com eles nem sequer informaram sobre a morte do rapaz. Jorge Nogueira, 51, pai da vítima, destacou que o filho foi atingido na cabeça.

"Só quero entender o que aconteceu, porque até agora nenhuma autoridade veio falar conosco", disse Marineide da Cruz, 42, mãe de Islan, na manhã de ontem, quando foi até o Instituto Médico Legal (IML) fazer o reconhecimento do corpo. Aline da Cruz, 23, falou com o irmão no sábado, quando ele estava em uma festa, antes de sair com Raimundo. "Lembro-me que pedi para ele ter cuidado e não voltar de moto para casa, caso tivesse ingerido álcool. Nesse momento, ele falou para eu ficar tranquila, pois pegaria uma carona", comentou. Na manhã de domingo, estranhou a falta de notícias. "Acredito que ele estava no lugar errado, na hora errada", lamentou a irmã.

Para Marineide, o tiro que matou o filho mostra a falta de preparo dos agentes de segurança pública, que poderiam intervir na fuga de outra forma, sem colocar vidas em risco. "Como a polícia atira na cabeça e espera que ele fique vivo? Ele estava apenas se divertindo", frisou Mari da Cruz, tia de Islan. "Era um menino novo, trabalhador, que tinha a vida toda pela frente. Me chamava de 'meu coroa' e ajudava nas despesas de casa", relatou  o pai, emocionado. O velório de Islan ocorre nesta manhã, no cemitério Campo da Esperança, da Asa Sul.

A ação

Na madrugada de domingo, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) realizou a Operação Álcool Zero no Eixo Monumental. Segundo a corporação, a ação, que contou com três pontos de blitz, tinha como objetivo abordar todos os motoristas que estavam saindo de casas de shows e eventos na região central da cidade e identificar infratores de alcoolemia.

Poucos instantes após o início da operação, os PMs relataram que o motorista da BMW se aproximou lentamente do primeiro ponto de bloqueio. O comandante da operação, que era um tenente da PMDF especialista em trânsito, pediu para que o carro de Raimundo se colocasse próximo do carro da frente. "Utilizamos isso para fazer com que o condutor não consiga sair do local", comentou o coronel Edvã Sousa, durante coletiva de imprensa.

Ainda segundo o relato, Raimundo aproximou o veículo do outro. No entanto, o tenente viu a roda direita se movimentando, indicando que o motorista iria manobrar. "Ele deu um pouco de ré e então começou a verbalização dos policiais com ordem para parar e descer, sacando as armas", detalhou o coronel. "Novamente, ele recuou e o tenente viu a roda direita em direção ao policial. Nisso, ocorreram os disparos", contou o militar.

Após os tiros, o motorista empreendeu fuga do primeiro ponto de bloqueio. "O segundo ponto estava a cerca de 200 metros. Ele jogou o carro novamente para cima de outro PM e, como já tinha a informação do primeiro ponto, houve os novos disparos", disse o coronel. "A partir desse momento, o condutor assumiu a responsabilidade do risco", avaliou o policial militar. "Isso é uma questão de milésimos de segundos para uma decisão que tem que ser tomada. Os PMs não ficam com a arma em punho. Isso tudo é o uso gradual da força", destacou o coronel Edvã Sousa.

Risco

De acordo com a PMDF, a intenção dos disparos era atingir o pneu do veículo para pará-lo. Questionado sobre a conduta na abordagem, o coronel da PMDF ressaltou que o objetivo era cessar o risco iminente do que estava acontecendo. "E se não houvesse os tiros e a parada, quantas vidas outras poderiam ter sido tiradas? Os policiais se posicionaram de maneira a não colocar em risco a vida das outras pessoas, bem como de outros policiais. Nenhum outro veículo foi atingido em canto nenhum da lataria", destacou o militar.

Depois de tentar ultrapassar o segundo bloqueio, o que teria dado início à perseguição, Raimundo parou o carro e saiu, deitando no chão, na via S1. De acordo com a PMDF, a perseguição policial ocorreu porque o motorista estava com evidentes sinais de embriaguez. "Não é comum as pessoas fazerem o que ele fez", comentou o policial.

Na avaliação do coronel, a ação da PM foi "necessária", mas a intenção era preservar todas as vidas. "Teve uma crescente, foi verbalizado, foi percebido que ele deu ré, continuou a verbalização, até acontecer os primeiros tiros. A partir do momento que ele para o veículo e deita no chão, não há mais disparos", pontuou o coronel.

O veículo da marca BMW tinha cerca de R$ 10,5 mil em débitos. "Vimos também que a proprietária anterior, que era uma senhora, passou esse veículo sem nenhuma notificação. Ele era um infrator", comentou o policial. A PMDF afirma ainda que Raimundo foi autuado por dirigir embriagado em 2016.

O motorista não fez o teste do bafômetro, mas foi autuado por embriaguez ao volante por conta do auto de constatação. "É um documento que descreve todas as características do condutor embriagado. Ou seja, andar cambaleante, olhar vermelho, fala arrastada, odor etílico. Essas características corroboram", disse o coronel.

Investigação

Durante coletiva de imprensa para esclarecer detalhes da abordagem na blitz com tentativa de fuga e morte, o delegado-chefe da 5ª Delegacia de Polícia (Área Central), João de Ataliba Neto, afirmou que foram instaurados dois inquéritos policiais. O primeiro é relativo ao flagrante do motorista, Raimundo Cleofás, preso pelos crimes de tentativa de homicídio contra um policial militar e por embriaguez ao volante. O segundo é para apurar as circunstâncias da morte do passageiro Islan da Cruz Nogueira, causada pelo Estado.

Além disso, Ataliba disse que, em razão do alto grau de embriaguez do condutor, não foi possível interrogá-lo no momento do flagrante. Dessa forma, ainda não se sabe com certeza o que motivou a fuga. A polícia aguarda o resultado da perícia no veículo e o laudo cadavérico da vítima. Não há informações de quantos tiros atingiram o carro e se algum chegou a atingir o pneu.

No entanto, as oito armas de oito PMs que dispararam foram apreendidas para saber de qual pistola de 9mm saiu o disparo que vitimou o passageiro. O motorista passou por audiência de custódia e teve a prisão convertida em preventiva. A PCDF tem 10 dias para concluir o inquérito policial.

A PCDF ainda vai ouvir mais testemunhas, entre policiais, que serão identificados e que estavam na operação, e pessoas presentes no local do ocorrido. Ao todo, foram 15 agentes, sendo cinco por ponto de bloqueio. As câmeras de segurança da via também serão analisadas para entender a dinâmica da fuga. "Hoje, a gente tem mais perguntas do que respostas", concluiu o delegado.

Afastamento

Segundo o coronel Edvã Sousa, os PMs envolvidos na ação foram afastados da função. "Eles estão afastados para poder preservar as questões psicológicas deles, não porque estão sendo investigados. Eles fazem parte de um processo e, como eles estavam no ambiente, vão sofrer toda a investigação policial militar e pela questão do inquérito civil. O afastamento não é por serem culpados. É o rito processual estabelecido", pontuou.

Ainda de acordo com o coronel, todos os policiais passam por um treinamento para saber utilizar as armas de fogo. "Eles fizeram aquilo que tinha que ser feito e que foi avaliado no momento. Tem todo o contexto do local: luminosidade, o grau de risco, a preocupação, a adrenalina. A maioria dos tiros estavam na região abaixo do vidro e próximo aos pneus do lado direito na tentativa de fazer o carro parar", avaliou.

"Há uma desproporcionalidade"

O caso do veículo evasor, com um resultado fatal, ocorrido na madrugada de domingo, demonstrou que esse treinamento feito pela polícia precisa de uma reciclagem ou de uma revisão, porque não está surtindo efeito. O procedimento ideal seria aquele que evitasse riscos à integridade física e até a vida.

Dessa forma, o policial deve colocar obstáculos ao veículo, usando cavaletes ou camas de faquir, ou direcionar a blitz para um local onde haja obstáculos naturais ou mesmo edificações que impeçam a fuga desse veículo. Mas jamais atirar, pois isso coloca em risco não apenas o condutor e o passageiro do veículo, mas todos que se encontram nas proximidades, considerando que os disparos podem atingir outros veículos ou transeuntes.

O tiro é uma conduta excessiva, ainda que, durante a fuga, o condutor tenha atingido o policial. Há uma desproporcionalidade entre o bem jurídico da fiscalização de trânsito e o bem jurídico que se deve proteger, que é a vida. Este é um bom momento para que a Secretaria de Segurança Pública reveja esses procedimentos e adote o que realmente é recomendado, observando o Código de Processo Penal, o Código de Trânsito e o Manual de Procedimento Operacional.

Júlio Hott é mestre, professor de direito da UDF e especialista em segurança pública.

 

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O tiro é uma conduta excessiva, ainda que, durante a fuga, o condutor tenha atingido o policial. Há uma desproporcionalidade entre o bem jurídico da fiscalização de trânsito e o bem jurídico que se deve proteger, que é a vida. Este é um bom momento para que a Secretaria de Segurança Pública reveja esses procedimentos e adote o que realmente é recomendado, observando o Código de Processo Penal, o Código de Trânsito e o Manual de Procedimento Operacional.

Júlio Hott é mestre, professor de direito da UDF e especialista em segurança pública.