Casos recentes de invasões, motim, ameaças a servidores e até entrada de drogas acendem um alerta no sistema socioeducativo do Distrito Federal. Ambientes encarregados de promover a educação, a ressocialização, a construção de valores sociais e ensinar sobre direitos e deveres aos jovens infratores se tornaram espaços de medo e insegurança. Por trás desses impasses, a certeza da impunidade impulsiona uma onda de violência. Só este ano, de 7 de junho a 15 de setembro, uma única unidade de internação, a do Recanto das Emas (Unire), registrou 16 brigas entre adolescentes. Na de São Sebastião, em um intervalo de quatro dias neste mês, ocorreram dois princípios de rebelião.
São 1.091 adolescentes infratores lotados nas nove unidades de internação, nas seis de semiliberdade e nas 15 de atendimento em meio aberto. Todos são matriculados nas escolas e participam de projetos culturais e cursos profissionalizantes. Quem define a medida socioeducativa ao menor é o juiz da Vara de Infância e Juventude (VIJ). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece seis medidas: a advertência, a reparação de dano, a prestação de serviço à comunidade, a liberdade assistida, a semiliberdade e a internação em estabelecimento educacional, que tem um prazo máximo de três anos.
Especialistas da área de segurança pública avaliam que a sensação de impunidade na pessoa menor de 18 anos se reflete em um cenário violento tanto nas ruas quanto nas unidades socioeducativas. "O sentimento é de revolta e falta de expectativas de reinserção plena na comunidade e na vida em sociedade. Isso devido à marginalização, à estereotipação e aos diversos etiquetamentos aos quais são submetidos, seja pelos filtros de seletividade policial, pela estigmatização social, pelos pânicos morais em circulação nas representações coletivas da população, até que o recrutamento pelo crime não se torne mais uma opção, mas o destino, e as unidades de socioeducação se tornaram na prática o lugar de entrada para um continuum simbiótico do sistema penitenciário", avalia Welliton Caixeta Maciel, pesquisador de teoria do direito penal e política criminal.
Reflexo desse panorama violento é a participação de adolescentes em organizações criminosas e em crimes contra a vida, como o latrocínio (roubo seguido de morte) do cobrador de ônibus Ariel Santos Marques, 26 anos, morto em 6 de outubro com um tiro no ouvido durante um assalto no coletivo em que trabalhava. O crime foi cometido por um menor, de 17 anos, e outros dois jovens, de 19 e 20.
Adolescentes infratores também figuram no envolvimento em gangues, como as do Paranoá e do Itapoã. As investigações da 6ª Delegacia de Polícia (Paranoá) revelaram que esses menores são usados como "ponta de lança" ou executores dos crimes mais graves em troca de dinheiro ou drogas. Os chefes das gangues entendem que, caso esses adolescentes sejam presos, as penas serão mais brandas e logo eles estarão nas ruas para o cometimento de novos crimes.
Terror e pânico
Mesmo em cumprimento de medidas socioeducativas nas unidades de internação, adolescentes alastram terror. O Correio obteve acesso aos detalhes de ocorrências que envolvem ameaças contra agentes, brigas entre socioeducandos e princípio de motim. A unidade do Recanto das Emas registrou, por exemplo, 16 brigas no período de janeiro a setembro deste ano. Cinco ocorreram dentro da escola.
Em uma delas, em 5 de julho, um adolescente saiu da sala para buscar um livro na biblioteca e, ao retornar, outro menor atacou a vítima com uma cadeira. O objeto também atingiu um galão cheio de água do bebedouro. Em outro caso, registrado em 15 de agosto durante uma aula de artes, dois socioeducandos deram início a uma discussão e um deles arremessou uma cadeira contra o outro. Em ato contínuo, os dois entraram em luta corporal com socos e chutes e um dos adolescentes chegou a tentar estrangular o menor com um golpe de mata-leão.
Casos de ameaças contra os servidores são recorrentes. Em 24 de agosto, enquanto os adolescentes eram retirados dos quartos para as atividades externas, uma agente foi xingada com palavras de baixo calão. Ao ser indagado, o garoto respondeu: "Quem você pensa que é? Eu olho para onde quiser". Depois, tentou partir para cima da servidora e foi impedido pela equipe.
No ano passado, um caso preocupou os servidores da carreira, depois que uma menina, de 15 anos, planejou a morte de uma agente. A menor cumpria medida socioeducativa na Unidade de Internação Feminina do Gama e estava em liberdade. Em conversa informal com outros servidores, a reeducanda confessou que roubou um carro, juntou-se a outras pessoas e, com uma arma de fogo, esperou a mulher do lado de fora da unidade. A intenção era aguardar o momento que a servidora fosse tirar o intervalo para atacá-la.
Entre 20 de dezembro de 2021 e 18 de março deste ano, período em que estava solta, a garota roubou um Cobalt no estacionamento de uma universidade do DF com outras pessoas e fez uma campana no caminho da estrada de chão que liga a unidade à pista principal. O objetivo, segundo ela, era fazer "algum mal" à agente. Contudo, o plano só não foi executado porque, neste dia, a servidora não saiu da unidade para jantar.
A menina contou que o carro estava sem placa e farol, e estacionado próximo aos arbustos no caminho da estrada de chão, onde aguardou a policial sair para jantar. Questionada sobre o motivo do plano, a menor alegou que foi a única vez em que preparou uma "campana" e se sentiu "diminuída" pela servidora.
Rebelião
As tentativas de invasões nas unidades de internação se tornaram mais frequentes depois da desativação de um posto da Polícia Militar. O caso mais recente ocorreu no fim de agosto, na unidade do Gama, onde um adolescente armado com uma pistola tentou invadir o local. Os agentes viram o momento em que o suspeito se aproximava da unidade e correram para fechar o portão. Apesar da tentativa frustrada, o menor começou a depredar os carros dos servidores
No ano passado, duas unidades foram alvos de criminosos. No Recanto das Emas, um homem identificado como Maicon Antonio de Jesus tentava arrombar o portão e gritava para que abrissem. Ele correu e deu um segundo chute na porta. O agente pediu o reforço das equipes e, quando abriram o portão, viram uma poça de sangue no chão e várias marcas nas paredes. A PMDF foi acionada e, em buscas pelo suspeito, encontrou o homem dentro da unidade escondido em um matagal.
Menos de um mês depois, a Unire sofreu outra invasão. Dessa vez, um homem de 24 anos, Maycon Oliveira Novais, pulou a cerca e, aos agentes socioeducativos, alegou que estaria em fuga por estar sendo perseguido e ameaçado de morte. O fato ocorreu na madrugada de 6 de novembro de 2022, quando um servidor ouviu gritos vindos de dentro da unidade. Maycon estava próximo ao Módulo 5, sujo de sangue.
Em um intervalo de quatro dias, adolescentes da Unidade de Internação de São Sebastião promoveram dois princípios de rebelião e atearam fogo em pedaços de espuma de colchão e em roupas. A primeira ocorreu em 3 de outubro. Por volta das 23h45, agentes escutaram barulho de pancadas vindo de uma das portas nos alojamentos do corredor. Num dos alojamentos, os policiais encontraram diversas espumas de colchão e perceberam sinais de fumaça e fogo no interior do quarto. Os agentes solicitaram apoio via rádio dos plantonistas e perceberam que outras espumas em chamas estavam sendo arremessadas para outros dois quartos do corredor.
O interno suspeito teria resistido ao comando dos agentes e resistido às algemas, sendo necessário o uso de spray para conter o menor. Os outros socioeducandos foram retirados dos alojamentos algemados e levados à área de convivência de módulo para impedir qualquer fuga. Ao ser questionado pelos servidores, o adolescente suspeito de atear fogo nos colchões confessou o crime e afirmou que tinha a intenção de "puxar" um motim.
Em nota enviada na época, a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus-DF) informou que a situação ocorrida na Unidade de Internação de São Sebastião foi controlada imediatamente. A pasta diz que um fato isolado entre dois internos desencadeou a queima de parte dos colchões.
Três dias depois, adolescentes da mesma unidade começaram um novo princípio de rebelião, quando internos de dois módulos atearam fogo nas espumas do colchão. Os menores infratores conseguiram expandir o motim para o terceiro módulo em menos de uma hora. A confusão foi encerrada pelos agentes e os envolvidos, conduzidos à DCA.
Carreira
Em 16 de setembro, os agentes socioeducativos entraram em greve para pressionar o GDF a enviar o Projeto de Lei que reestrutura a carreira socioeducativa, com as pautas sancionadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 (LDO) ao Legislativo. As pautas incluem a reestruturação das tabelas de vencimento básico, a implementação da gratificação de habilitação, o auxílio-fardamento e o pagamento do adicional de insalubridade.
Durante a greve, foram suspensas as visitas familiares aos socioeducandos, as atividades pedagógicas e os cursos profissionalizantes, bem como o serviço voluntário gratificado, com adesão de 100% dos servidores. A paralisação envolveu os serviços das unidades de internação, semiliberdade, meio aberto, e setores administrativos da Secretaria de Justiça, Subsecretaria de Administração Geral, Subsecretaria do Sistema Socioeducativo e Corregedoria.
O movimento foi suspenso na sexta-feira após uma conversa do sindicato com o GDF. A reportagem entrou em contato com a Sejus e enviou uma série de questionamentos sobre a retirada do posto policial na área externa das unidades, o que estava sendo feito para coibir as invasões. A pasta, no entanto, respondeu apenas sobre o número de socioeducandos e sobre a greve dos agentes.
Em nota oficial, o órgão confirmou o fim do movimento e ressaltou que a decisão foi tomada por representantes do sindicato dos servidores presentes em reunião com a Pasta e a Casa Civil. "Também foi acordado que a categoria deveria apresentar proposta em novo encontro, ocorrido na segunda-feira (10). O documento foi recebido pela Casa Civil e será feita análise, baseada em esboços a respeito do impacto financeiro e questões administrativas pertinentes."
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