Políticas públicas educativas e de conscientização que trazem os homens para o cerne da luta contra a violência de gênero estão sendo ampliadas e têm se mostrado eficazes no combate a esse problema no Distrito Federal. Em outubro de 2023, os Núcleos de Atendimentos à Família e aos Autores de Violência Doméstica (NAFAVDs) completam 20 anos de atuação na capital do país. Somando a essa iniciativa, duas novas campanhas focadas em incentivar as denúncias de violência foram lançadas em setembro: "Mulher, não se cale" e "Não ao covarde". Especialistas ouvidas pelo Correio ressaltam que essa guerra vai além do atendimento exclusivo à vítima e que as ações precisam chegar até os homens.
Levantamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) mostra que, apesar dos dados alarmantes de crescimento de feminicídios — com 25 ocorrências somente este ano e duas em investigação —, os homens estão mais conscientes quanto ao cumprimento de medidas protetivas. Das cerca de 12 mil medidas concedidas pela Justiça em 2022, 85% foram cumpridas pelos agressores. A Lei 6.933/2021 passou a determinar que as autoridades competentes responsáveis pelas medidas protetivas de urgência encaminhem o agressor para atendimentos psicossociais em grupo ou individuais "desde a primeira intervenção do Estado na relação".
O Distrito Federal conta com oito NAFAVDs funcionando atualmente. Um deles funciona no Paranoá, onde a psicóloga Maísa Guimarães atua desde 2010. Os homens e mulheres atendidos nesses núcleos, geralmente, são encaminhados pela Justiça. No entanto, também é possível receber demandas espontâneas. "Em alguns casos, os homens vêm após a condenação, como forma de atenuar a pena. É comum que, no início, os autores de violência tenham uma postura de minimizar os atos cometidos. Nosso trabalho é feito a médio prazo. Para ser eficaz, é preciso um período de acompanhamento entre quatro e seis meses. Aqui, nós fazemos um trabalho de refletir sobre temas específicos, compartilhar experiências e fazer um trabalho de responsabilização e reflexão. Nós os ajudamos a se responsabilizarem pela violência cometida e também pela mudança dali para frente", explicou.
Os atendimentos são feitos em grupo e também de forma individual. "Fazemos exercícios de reflexões direcionadas sobre a Lei Maria da Penha, sobre riscos de feminicídio, para pensar sobre as masculinidades e por que a questão da violência tem sido tão central. É um trabalho muito pautado nas questões de gênero. Ajudamos eles a pensar sobre como estabelecer outras formas de comunicação para resolver conflitos, que não seja a violência", detalhou a psicóloga.
A secretária da Mulher do DF, Giselle Ferreira, destacou a importância de trazer os homens para o centro da discussão e o combate à violência doméstica. "A pauta das questões de gênero precisam atingir os homens. Nós estamos, aos poucos, fazendo com que eles reflitam sobre o seu papel na sociedade. Precisamos quebrar a cultura machista. A família toda precisa estar atenta aos sinais", afirmou a titular da pasta.
A presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica e Familiar da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), Cristina Tubino, ressalta a importância dos atendimentos nos NAFAVDs serem feitos aos agressores e às vítimas. "A violência doméstica é multifacetada e não se resolve fazendo acompanhamento somente da vítima. É preciso intervir com as pessoas que cometem as violências. Os homens, muitas vezes, têm dificuldade de enxergar as companheiras, mulheres, namoradas, noivas, filhas como iguais", ressaltou. "É importante entender também que os acompanhamentos são feitos após a violência já cometida. É preciso pensar políticas públicas para instruir e educar as crianças e os adolescentes para mudarem a forma de ver a mulher e de pensar os papéis exercidos na sociedade para evitar que a violência continue acontecendo", analisou.
A psicóloga Jhanda Siqueira explica que esse tipo de acompanhamento psicossocial ajuda os homens a ressignificarem o conceito de masculinidade. "Muitos acham que é normal 'defender a honra' com violência. Na cabeça desses, as mulheres são objetos de satisfação de seus desejos. A ideia de que a mulher é inferior e submissa faz parte da masculinidade tóxica", analisou. A profissional explicou que muitos homens ainda não entendem o conceito de violência psicológica. "Alguns não entendem que também é violência atos como quebrar o celular, falar algo, perseguir as mulheres, tratamento de silêncio. Os homens precisam entender que a dificuldade de lidar com as próprias emoções é responsabilidade deles. Esses grupos são importantes para reeducar esses homens quanto ao próprio comportamento e a forma de lidar com as próprias emoções", ressaltou Jhanda.
Relatos
O Correio conversou com dois homens que fizeram acompanhamento nos NAFAVDs e relataram a experiência. Francisco (nome fictício), 41 anos, foi encaminhado pela Justiça após um episódio de violência psicológica e frequentou o núcleo por um ano, comparecendo uma vez por semana. Antes disso, ele nunca havia feito terapia. "Mudou muita coisa na minha mentalidade. Algumas coisas que eu não tinha conhecimento puderam ser explicadas por meio de orientações detalhadas. O apoio psicológico ajuda muito no processo de reabilitação", contou.
Francisco ressaltou que é uma luta diária. "Antes, quando eu me aborrecia, eu já alterava a voz. Agora, aprendi a ter mais autocontrole e autoconfiança, sei lidar melhor com alguns tipos de situações. Minha esposa já comentou que esse acompanhamento fez toda a diferença para o nosso relacionamento. As conversas nos grupos reflexivos ajudam muito também, porque nós aprendemos que, juntos, podemos melhorar e lidar melhor com nossas emoções. É bem construtivo", completou.
João (nome fictício), 44, foi encaminhado ao NAFAVD após um episódio de agressão a uma ex-namorada e relatou mudança de mentalidade. "Eu ia de coração aberto. Aprendi com os meus erros. Foi uma experiência de grande importância. Hoje, vejo tudo de outra forma, não só com relação a mulheres, mas também com relação à família e filhos. Aprendi a respirar fundo e ter mais serenidade para enfrentar as adversidades da vida", declarou. "Amadureci com meu próprio erro. Eu acho que todo mundo deveria buscar autoconhecimento. Hoje, sou uma pessoa mais tolerante", acrescentou.
Ampliação
A secretária da Mulher, Giselle Ferreira, anunciou que um novo NAFAVD será inaugurado ainda em outubro em Ceilândia. "Queremos ampliar cada vez mais esse programa", disse. A vice-governadora do DF, Celina Leão, endossou a intenção de expandir os núcleos. "Fizemos uma reunião e a gente sentiu essa necessidade de ampliar esse tipo de atendimento. A secretaria vai estruturar como vamos fazer o chamamento público, para que a gente consiga melhorar esse atendimento dentro dos nossos núcleos. A gente precisa ter uma atenção integral à família. É educativo a pessoa que, na mínima agressão, vai para um programa desses para fazer esse acompanhamento, porque ele pode conseguir sair do ciclo de violência. Então, percebemos a necessidade e vamos ampliar o atendimento nesses grupos", anunciou Celina.
A Secretaria da Mulher do DF lançou, ontem, a campanha "Mulher, não se cale!" em parceria com o Instituto Inside Brasil. O objetivo é a ampliação do debate sobre a violência de gênero em todo o Distrito Federal e incentivar as mulheres a denunciarem ocorrências de agressões, atingindo o público em seu cotidiano, principalmente aqueles que circulam nas estações de metrô. A iniciativa foi lançada na Estação Galeria, e percorrerá de forma itinerante outras cinco estações até 27 de outubro.
As ações do projeto estarão presentes em todo o Metrô-DF, utilizando cartazes e banners, bem como estandes de divulgação, conscientização e apoio em estações estratégicas, como Central, Galeria dos Estados, Águas Claras, Praça do Relógio, Samambaia Terminal e Centro Ceilândia. Além disso, haverá adesivagem de trens.
No início de setembro, a pasta lançou a campanha #NãoAoCovarde, com o propósito de aumentar a conscientização sobre a violência doméstica. Seu principal objetivo é dar visibilidade à causa e sensibilizar a sociedade para a necessidade de agir. Por meio do uso dessa hashtag, a campanha busca encorajar vítimas a denunciar abusos, oferecer apoio a quem precisa e educar o público sobre os sinais de violência doméstica. Além disso, a iniciativa destaca a importância de responsabilizar os agressores, rotulando-os como "covardes," para chamar a atenção para a falta de coragem moral envolvida na violência contra as mulheres.
A ideia é usar a hashtag como forma de lembrete de que todos têm um papel a desempenhar na prevenção da violência doméstica, no apoio às vítimas e na promoção de relacionamentos saudáveis e igualitários.
Colaborou: Arthur de Souza
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