Menos carros nas ruas, mais mobilidade ativa e investimentos maciços em transporte público de massa. Esse é o caminho para se evitar um iminente colapso no trânsito da capital do país. O Distrito Federal tem todas as condições para ter uma mobilidade urbana comparada à de países de primeiro mundo. Mas, a falta de planejamento a longo prazo e a realidade atual tornam essa possibilidade utópica, segundo especialistas entrevistados ao longo do último mês.
Na reportagem de hoje da série Brasília em Movimento, o Correio traz um panorama sobre o que precisa ser feito para que, no futuro, o brasiliense consiga se locomover de forma segura, saudável e menos estressante. Mas, no momento, o GDF sequer tem um Plano Diretor de Transportes Urbanos (PDTU), instrumento de planejamento que define diretrizes e estratégias para o transporte a médio e longo prazos. A última pesquisa de origem e destino do brasiliense foi feita há 10 anos.
Futuro sobre trilhos
Investimentos em trem, no BRT, no metrô, em Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs), e na melhoria da infraestrutura de transporte são alguns dos caminhos apontados por quem se dedica a encontrar soluções para a mobilidade pública. A criação de taxa de congestionamento e uso de inteligência artificial na gestão do sistema são outras ações que precisam ser adotadas para garantir o ir e vir sustentável à população. Além disso, a consolidação de uma infraestrutura urbana sustentável para pedestres e ciclistas também é citada como soluções possíveis para uma mobilidade viável para todos.
Aldo Paviani, geógrafo e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), sugere que o Expresso Pequi saia do papel. Trata-se de um projeto de infraestrutura no modal ferroviário. O expresso ligará Brasília a Goiânia e consiste num trem de passageiros e de carga. Os estudos de viabilidade feitos pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) foram concluídos em 2016 e chegaram à conclusão de que o transporte é viável, se houver Parceria Público-Privada (PPP) e investimentos dos governos federal, de Goiás e do Distrito Federal. O custo estimado é de R$ 9,5 bilhões. "O trem sairá de Goiânia, passará por Anápolis, Luziânia, Valparaíso, naquela região de Águas Lindas e Ceilândia até o Plano Piloto. É muito mais útil do que 20, 30 ônibus circulando", estima Paviani.
Menos carros
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Brasília tem uma frota de 2.021.627 veículos. Para Dênio Augusto de Oliveira, promotor do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e coordenador da Rede Urbanidade, quanto mais carros na cidade, mais poluição, mais atropelamentos e mais mortes. "Estamos construindo cidades para carros. Estamos atrasados na missão de começar a construir cidades para as pessoas", destaca. "Se continuarmos priorizando o uso do automóvel como principal meio de transporte, acontecerá, além de tudo, um aprofundamento de uma segregação social, onde as pessoas de baixa renda têm cada vez mais dificuldade de ter acesso à cidade e aos benefícios que ela oferece. Hoje, o transporte coletivo é sempre a última escolha, quem usa é porque realmente não tem outra opção. Não deveria ser assim", acrescenta.
O promotor explica a importância de a população se conscientizar e começar uma mudança de mentalidade e atitude. "A sociedade precisa começar a pensar nessa questão como algo urgente. Não é fácil mudar uma cultura, mas precisamos começar. O carro não pode ser o protagonista", pontua. "A mobilidade urbana ideal e digna de primeiro mundo tem respeito ao meio ambiente, cidades com espaços que acolham as pessoas, eficiência no transporte público, respeito às pessoas com deficiência e calçadas com acessibilidade", finaliza.
O urbanista Pedro Grilo acredita que adaptar a infraestrutura urbana para que o trajeto de carros seja priorizado não é o melhor caminho. "O cenário atual parece confortável, principalmente porque ainda é relativamente rápido se deslocar de carro na cidade. Mas estamos construindo nossa própria cova se seguirmos investindo em viadutos e alagamento de vias. A ênfase no automóvel é um reconhecido erro histórico dessa cidade", opinou. "Alargar vias para resolver o trânsito é o mesmo que comprar calças largas para enfrentar a obesidade. Não funciona", ressalta.
Para o urbanista, a solução é investir em estrutura que priorize uma mobilidade ativa. "A primeira coisa é focar na coisa certa, e na ordem certa. Pessoas com deficiências, pedestres, ciclistas, transporte público, e, por último, o carro. Nessa ordem de prioridade", elenca. "No DF como um todo há necessidade de se encarar os cruzamentos. Hoje quase nenhuma ciclovia tem faixa ou semáforo, quando precisa cruzar uma via. Quando se fala de pedestres, então, passagens aéreas ou subterrâneas os obrigam a caminhar muito mais do que o necessário, e ainda os expõe a riscos desnecessários. É uma inversão de valores", criticou Grilo. "Para mim, o cenário ideal para daqui 20 anos seria um em que o brasiliense acordasse de manhã e não pensasse em carro, pois teria duas ou três alternativas melhores, mais sustentáveis e baratas para ir trabalhar ou estudar", conclui.
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Perda de passageiros
Levantamento mais recente da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) revela que o ônibus urbano perdeu quase 8 milhões de viagens diárias em três anos. O presidente executivo da NTU, Francisco Christovam, atribui parte da crise do setor a um frágil serviço prestado, mas ressalta que a conjuntura econômica contribuiu para isso. "Com a pandemia, perdemos 80% dos passageiros e, com isso, a receita caiu. Desse total, ainda precisamos recuperar de 15% a 17% dos usuários e não sabemos se eles voltarão ao sistema", afirma.
Para melhorar a qualidade do transporte público, Francisco Christovam defende o subsídio do sistema e o compartilhamento da responsabilidade entre setores público e privado. "Atualmente, em 168 cidades, parte da tarifa é subsidiada. Em Brasília, o percentual chega a 60% do valor da passagem", diz. Para ele, o argumento dos governos de que não há recursos para custear parte da passagem não se sustenta. "Pode-se criar taxa de congestionamento, cobrança de estacionamento, há discussão até de se destinar parte do IPTU para o transporte público. Os mais ricos não usam o coletivo, mas se beneficiam do sistema quando os empregados o utilizam", enfatiza.
Rômulo Ribeiro, professor dos Programas de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e em Transportes da UnB, acredita que o transporte público deveria estar nas mãos do governo. "Este, por sua vez, deve investir em ônibus novos, em mais veículos circulando e rever toda a programação de circulação. O sistema está dentro do setor privado, que visa ao lucro, obviamente", observa. "Temos que investir em VLT para curtas distâncias (na W3 e Eixo Monumental, por exemplo) para diminuir, inclusive, o fluxo de ônibus. BRT é uma aposta certa. Mas precisa ser melhor planejado. Não temos BRT ligando Planaltina ao Plano Piloto, por exemplo. É uma população periférica que usa um transporte muito deficitário", acrescenta.
O professor Aldo Paviani afirma também que não vê mobilidade em Brasília na próxima década sem um trem suburbano. Segundo ele, mais de 150 mil pessoas vêm diariamente da região metropolitana para o DF, onde trabalham, estudam e buscam por serviços como saúde e educação. "Só um trem a cada meia hora vai superar um problema desta magnitude. Os governos dizem que é caro. Caro é ter ônibus circulando, gastar com pneu, com gasolina, com óleo, com salário de cobrador e motorista. Ao longo do tempo o trem se paga. O ônibus só dá custos", diz.
Plano Diretor
O professor Pastor Willy Taco, do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), ressalta a importância de um planejamento urbano por parte do GDF. "Para começar, é preciso elaborar um Plano Diretor de Mobilidade. Embora tenhamos alguns dados do IBGE, como o fato de Brasília ter sido a cidade que mais cresceu, e de ter a maior favela do país, precisamos entender como está a urbe do ponto de vista da ocupação urbana. A pandemia mudou os padrões de deslocamento das pessoas e, conhecer esse novo fluxo é fundamental para elaborar qualquer política de mobilidade a curto, médio e longo prazos", sugere. "É preciso repensar também alguns investimentos em infraestrutura. A tecnologia, a inteligência artificial podem e devem ser usadas como aliadas da gestão do sistema de transporte público e da mobilidade. Alguns países já têm uma plataforma com desdobramentos por intermédio de aplicativos: une ônibus, metrô, bicicleta compartilhada, carro por aplicativo. O usuário escolhe um pacote de como quer fazer cada trecho do deslocamento", completa.
O professor da UnB e especialista em Transporte Público e Trânsito, José Matsuo Shimoishi destaca a importância da atualização da pesquisa Origem-Destino (O/D) no DF, para que os governantes possam conhecer melhor os usuários das vias públicas. "A última pesquisa foi feita há mais de 10 anos. Quem governa precisa entender de onde as pessoas saem, para onde vão, qual modal usam. Não dá para implementar melhorias com base no achismo", lembra.
A pesquisa faz parte do Plano Diretor de Transporte Urbano do DF (PDTU/DF) e a última foi realizada em 2011. Segundo a Secretaria de Transporte e Mobilidade do DF (Semob), tratativas estão em curso para fazer a atualização e a revisão do PDTU/DF ainda neste semestre. O plano fundamenta-se na articulação dos vários modos de transporte com a finalidade de atender às exigências de deslocamento da população, buscando a eficiência geral do Sistema de Transporte Público Coletivo do Distrito Federal (STPC/DF) e garantindo condições adequadas de mobilidade para os usuários.
A secretaria está em processo de finalização de um convênio com o Laboratório de Transporte e Logística (Labtrans) — instituição que faz parte da Universidade Federal de Santa Catarina — para atualização do Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do Distrito Federal (PDTU-DF) e elaboração do plano de mobilidade previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana.