Memória

Ana Lídia: a cronologia do crime que segue sem respostas há 50 anos

Em 11 de setembro de 1973, a morte brutal de uma menina de 7 anos abalou para sempre o clima de tranquilidade que pairava sobre Brasília. Apesar da repercussão, ninguém foi punido

O 11 de setembro de 1973 entra para a história de Brasília como o dia de um dos crimes mais bárbaros da capital do Brasil. Em meio à ditadura militar, Ana Lídia, de apenas 7 anos, filha de servidores públicos — assim como boa parte dos moradores da capital à época — desaparece e é encontrada morta 22 horas depois. O crime, que teve muitos suspeitos, não alcançou um desfecho.

Em cinco décadas, muitas perguntas ainda seguem sem resposta, apesar de terem ocorrido várias investigações, muitos julgamentos e nenhuma condenação. Confira na reportagem os principais pontos da investigação do caso, que completa 50 anos nesta segunda-feira (11/9).

11 de setembro de 1973

O desaparecimento

  • A menina Ana Lídia, de 7 anos, foi deixada pelos pais na escola Madre Carmen Salles, na 604 Norte, para aula de reforço na parte da tarde.

  • A mãe a levou para dentro da escola, mas a menina não chegou a acompanhar a aula.

  • Ela foi abordada por um homem alto, loiro, de cabelos compridos, que vestia blusa branca e calça verde-oliva, segundo testemunhas oculares afirmaram na época e, na companhia dele, deixou o pátio da escola pela última vez.

Arquivo CB/CB/D.A Press -
Arquivo Pessoal -

Mistérios começam a aparecer

  • A descoberta do desaparecimento se deu cerca de duas horas e meia após a menina ser deixada na escola.

  • Como de costume, a empregada da família, Rosa, foi buscá-la no colégio quando recebeu a notícia de que a menina não acompanhou a aula.

  • Os pais foram notificados e a polícia também. A coleta de evidências e álibis ainda sobre o desaparecimento da menina ocorreu, mas não foi confirmada pela perícia — fato apontado como um dos furos do processo investigativo do caso.

Confira mais detalhes sobre a investigação do caso Ana Lídia aqui.

Alencar/D.A Press -

Indicativo de sequestro

  • O caso era considerado como um sequestro, inicialmente.

  • Na noite do desaparecimento de Ana, a família recebeu uma carta endereçada ao pai de Ana Lídia, Álvaro Braga, com os dizeres: “pai da menina raptada”.

  • Os sequestradores pediam 500 mil cruzeiros pelo resgate da menina, sem o envolvimento da polícia, e davam como data limite as 9h do dia 14.

  • Às 19h45, o delegado da 2ª Delegacia de Polícia, José Ribamar Morais, recebeu uma ligação anônima afirmando que estavam com Ana Lídia e queriam 2 milhões de cruzeiros pelo resgate, o equivalente a 250 mil reais. Ana Lídia foi colocada ao telefone e chorou pedindo pela mãe. Nenhum outro contato foi feito.

Arquivo CB/CB/D.A Press -

12 de setembro de 1973

Reviravolta no caso

  • Apenas 22 horas depois de começado o pesadelo, o corpo da menina foi encontrado em um matagal próximo à Universidade de Brasília (UnB), às 13h de quarta-feira, 12 de setembro de 1973.
  • Nua, com os cabelos louros cortados de forma irregular, bem rente ao couro cabeludo, e violentada, Ana Lídia teve a vida interrompida e foi atirada em um cova rasa no cerrado.
  • Por volta das 15h, foram chamadas as irmãs da escola onde Ana Lídia estudava para reconhecerem o corpo.
  • No local da desova do corpo foram encontradas duas marcas de coturno, dois preservativos e um lenço de papel com sêmen, registrados pelos investigadores.
  • A suspeita é de que a menina de 7 anos foi morta entre as 4h e as 6h de 12 de setembro, por asfixia.

Cláudio Alves/CB/D.A Press -
Cláudio Alves/CB/D.A Press -

Investigação

Envolvimento de familiares no crime é levantado

  • Pouco depois de o corpo da menina ser encontrado e a família notificada, Álvaro teria dito a esposa: “Tomara que não seja o que estou pensando. Depois disso, vêm coisas piores”. A reportagem de 11 de setembro de 2018 do Correio, relembrou a fala do pai, relatada em depoimento pela irmã Sacrário, funcionária da escola em que Ana estudava e que estava na casa dos Braga no momento do recebimento da notícia da morte da menina.
  • Em meados dos anos 1970, Brasília ainda tinha ares de cidade pequena. O Plano Piloto abrigava principalmente servidores públicos.
  • É nesse contexto quase bucólico que a família Braga vivia, com os filhos Álvaro Henrique Braga, à época com 18 anos, e Cristina Elizabeth Braga, então com 20 anos, e a pequena Ana Lídia. A família vivia no Bloco 40 (hoje Bloco B), da 405 Norte.
  • A caçula entre os irmãos, “Aninha”, era o xodó da família e muito protegida por todos. Não tinha costume de brincar nos pilotis do prédio e nem de sair de casa desacompanhada.
  • No decorrer da investigação, Álvaro Henrique foi apontado como um dos suspeitos de envolvimento na morte de Ana Lídia, fato que sempre foi negado pela família.

Arquivo/CB -
Arquivo CB/CB/D.A Press -

Relação com o tráfico

  • A investigação começava por Henrique, uma vez que tinha as mesmas características do suspeito de raptá-la da escola.
  • A família sempre negou o envolvimento do filho, afirmando que estava no carro com eles na hora em que deixaram a irmã na escola, fato que foi contestado por testemunhas oculares que viram o banco traseiro do carro vazio.
  • A acusação pesou sobre o jovem por conta de seu suposto envolvimento com drogas na época.
  • As investigações levaram a Raimundo Lacerda Duque, apontado como um traficante de Brasília e que trabalhava com a mãe de Ana Lídia.
  • O surgimento de Duque nas investigações começou a levar a polícia para ligações mais perigosas, uma delas de que Henrique teria “vendido” Ana Lídia para Duque e mais um grupo de filhos de políticos influentes do Distrito Federal para quitar dívidas de drogas. A ideia inicial seria conseguir dinheiro do pai, Álvaro Braga, que era funcionário federal.
  • A presença de filhos de homens poderosos no rol de acusados no inquérito é uma das teorias apontadas para a desaceleração do caso.

1974 — conclusão do inquérito

Acusação

  • Os indícios de envolvimento de Henrique e Duque eram fortes, o que motivou, quase um ano depois do crime, em 21 de junho de 1974, a prisão de Henrique e de Duque
  • Ambos foram denunciados pelo Ministério Público por “extorsão, agressão física e administração de tóxicos”. Seria de responsabilidade de Henrique a busca de Ana Lídia na escola e a tortura, abuso e morte, de autoria de Duque

1975 — suspeitos são absolvidos

Júri

  • Em 16 de junho de 1975, o juiz Dirceu Faria, da 2ª Vara Criminal, absolveu ambos os denunciados baseado na informação de que o crime havia sido combinado.
  • O magistrado entendeu que não havia provas de que a dupla se conhecia, alegando terem se conhecido pela primeira vez no dia da prisão.
  • Apesar de ter sido absolvido no caso Ana Lídia, Duque foi condenado a três anos e nove meses de reclusão por falsidade ideológica e uso de documento falso.

Parque Ana Lídia

  • Nos primeiros anos de Brasília, não havia muitos lugares de lazer para crianças. Então, em 1971, um grande evento fez a alegria de muitas famílias da cidade: a inauguração do Parque Iolanda Costa e Silva, nome da esposa do presidente Costa e Silva, que morreu dois anos antes.
  • Dois anos depois, o lugar mudou de nome para homenagear uma de suas frequentadoras: a menina Ana Lídia.

Igor TX / CB -
Igor TX / CB -

2 de dezembro de 1977

  • Após decisão de absolvição, o MP tentou recurso da decisão ao apresentar provas da relação existente entre Henrique e Duque, com depoimentos de testemunhas, mas a 1ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) manteve a decisão do juiz.

22 de dezembro de 1982

  • O extenso processo de investigação foi reaberto pela Delegacia de Homicídios em 22 de dezembro de 1982
  • A matéria do Correio que data a reabertura elucida que o delegado investigava o crime como “outro qualquer”.
  • Ao que se sabe, nada novo foi encontrado na segunda investigação

11 de setembro de 1993

  • O crime de Ana Lídia prescreveu ao completar 20 anos. Assim, mesmo se fossem encontrados, os suspeitos do caso não poderiam ser punidos pelo crime, ainda que confessassem à polícia.

2017

O livro Silêncio na cidade, do escritor e jornalista Roberto Seabra, é lançado em 2017. Obra ficcional, o livro trata da história de Ana Clara — inspirada em Ana Lídia — uma menina que é brutalmente assassinada.

Em entrevista ao Correio, Roberto conta que a história foi construída com um olhar dele sobre a história, com personagens ficcionais, em situações ficcionais, mas inspirados em um caso concreto.

Bruna Rocha/Divulgação -

O brasiliense, que tinha 8 anos à época do crime, viu ao longo da história o caso Ana Lídia fazer ‘aniversário’ nas páginas de jornais. “Por coincidência, em 2013, quando completou 40 anos, eu peguei um Correio Braziliense e estava lá: ‘40 anos de Ana Lídia’. E vi que não tinha nenhuma novidade. Então, pensei em contar de outra forma”, relata.

Roberto cita também uma inspiração em Conceição Evaristo, que dizia que a literatura ocupa vazios, ao construir a obra. “Tantos vazios da alma, quanto os vazios da realidade e da verdade também. Então, se a polícia não pode descobrir quem matou Ana Lídia, se a imprensa foi proibida de noticiar o caso da época, eu acho que o escritor, o poeta, o cineasta, o músico tem todo o direito de dizer de uma forma diferente”.

Ele conta ainda que convidou a também escritora Rosângela Vieira Rocha, de O indizível sentido do amor, para fazer a apresentação do livro, por ter conhecido Ana Lídia na época.

“Convivi com Ana Lídia Braga, menina loura, magrinha, extremamente viva, rosto de querubim, falante e de voz meio estridente, com enormes olhos azuis. Ela me visitava quase todas as manhãs, levada por sua irmã (...) Muito protegida pela família, usava um chapeuzinho de crochê branco para se prevenir do sol forte do clima áspero e um tanto hostil do Cerrado. E, talvez por tê-la conhecido, sua morte me atingiu profundamente”, diz um trecho do texto.

A obra de Roberto está disponível em versão digital e também em formato físico nas livrarias.

*Matéria realizada com informações do arquivo histórico do Correio Braziliense. Pesquisa de Francisco Lima Filho e Mauro Ribeiro, do Cedoc.