"Brasília era uma cidade pela metade. Prédios em construção, urbanização precária, largas áreas desabilitadas, terrenos vazios para edifícios públicos. Eram 650 mil habitantes em todo o Distrito Federal, 69 mil carros, 537 ônibus urbanos, 950 indústrias de médio e pequeno porte, não havia nenhuma das três pontes, não havia ponto de ônibus na W3 nem na L2 Norte". As páginas do Correio do ano de 1973 contavam que, mesmo sem sequer parecer uma cidade completa, Brasília presenciava um crime bárbaro.
Ana Lídia, uma menina de 7 anos, havia sido sequestrada, estuprada e morta entre 11 e 12 de setembro. O caso que tinha diversos suspeitos entrou no esquecimento e acabou sem solução. As investigações tiveram muitos erros, propositais ou não.
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Não houve muito rigor na apuração do caso. Digitais não foram procuradas no corpo da menina. As marcas de pneus foram esquecidas e sequer se efetuaram análises comparativas do esperma encontrado nas camisinhas com o dos suspeitos.
À época do crime, a polícia ignorou pistas, como o álibi usado pela família de Henrique para inocentá-lo. A justificativa é de que teria ido à rodoviária para resolver pendências com o Detran. As marcas de pneu de moto encontradas ao lado da vala onde estava o corpo de Ana Lídia não foram confrontadas com a Yamaha de Henrique. Os investigadores também não foram às poucas farmácias que existiam no Plano Piloto para apurar as vendas de camisinha — na década de 1970, a população não tinha o hábito de usar o preservativo.
Entre os furos, estão a falta de elementos na investigação e a falta de cuidados com a conservação de provas, além de esquecimentos suspeitos, que colaboraram para que o criminoso não tenha sido punido. O retrato falado dele não foi anexado ao processo. Um dos métodos clássicos de investigação da polícia é a divulgação de documentos com as principais características físicas de suspeitos de crimes.
O retrato-falado do suposto assassino é muito parecido com Duque, um dos acusados do crime. O delegado Mário Stuart, chefe da Delegacia de Homicídios à época, disse "não se lembrar" porque o retrato não foi anexado ao processo.
Não foram feitos exames grafotécnicos comparando a escrita à mão com a caligrafia dos suspeitos, os tipos usados na carta de resgate não foram comparados com os das máquinas de escrever da SAB (mercado), onde foi encontrada. Um funcionário da SAB, na 405/406 Norte, encontrou a carta sob uma pilha de sacos de arroz. O documento era endereçado a Álvaro Braga, pai de Ana Lídia.
Outro furo nas investigações foi que o álibi de Henrique, que havia dito que foi à rodoviária e ao Detran, não chegou. Nem Henrique, nem os pais da menina comentaram o caso com a imprensa à época.
Além disso, as freiras da escola onde Ana Lídia estudava só foram ouvidas mais de um ano depois do crime. Segundo o ex-presidente do STJ Romildo Bueno, à época desembargador que julgou o caso, a polícia errou ao não ouvir as freiras do colégio Madre Carmen Sallés no dia em que Ana foi sequestrada.
Em meio à ditadura
Durante as investigações, o surgimento de Raimundo Lacerda Duque, apontado como um traficante, levou a polícia para ligações mais perigosas. O assassinato da menina teria ocorrido no sítio do senador capixaba Eurico Rezende, em Sobradinho, e os culpados seriam o filho do senador, o Rezendinho, e Alfredo Buzaid Júnior, filho do Ministro da Justiça, conhecido como Buzaidinho.
A presença de dois grandes nomes nas investigações pode ter sido um empecilho para a polícia por diversos motivos, sendo a ditadura militar o maior deles. A suposta relação do filho de um ministro no crime era uma afronta à própria imagem do regime militar como um símbolo de ordem, progresso e moralidade.
Não foram colhidas provas materiais que poderiam ligar Álvaro, Duque e Buzaid ao crime e, em 1974, uma ordem desceu nas redações proibindo qualquer publicação sobre o caso: “De ordem superior, fica terminantemente proibida a divulgação através dos meios de comunicação social escrito, falado, televisado, comentários, transcrição, referências e outras matérias sobre caso Ana Lídia”, dizia a nota assinada pela Polícia Federal.
O fim dos suspeitos
A morte de Ana Lídia chegou a ir ao Tribunal do Júri, mas os suspeitos foram absolvidos por falta de provas em 1975. O crime prescreveu em 1993. Buzaidinho morreu em um acidente de carro em 1975, aos 19 anosm quando voltava de Ponta Grossa, no Paraná.
À época, jornalistas e interessados chegaram a dizer que a morte fora forjada para tirar o jovem de circulação, mas houve comprovaçaõ em 1986, após uma exumação. Rezendinho se matou, em 1990, aos 40 anos, no seu apartamento em Vitória. Duque morreu em 2005, após complicações causadas pelo alcoolismo. Apenas Álvaro Henrique ainda está vivo.
Com informações do arquivo histórico do Correio Braziliense. Pesquisa de Francisco Lima Filho e Mauro Ribeiro, do Cedoc.
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