Uma escolha em que o futuro oferece praticamente duas opções: o caixão ou a cadeia. A sensação de que o mundo do crime é vantajoso é, na verdade, uma sentença cruel e quase sempre definitiva. A cerca de 20km do centro da capital, criminosos travaram uma guerra nas regiões do Paranoá e de Itapoã. Os criminosos dividiram as cidades como uma espécie de "Faixa de Gaza".
A matança foi provocada pelas gangues Fábrica de Luto (FBL) e o Vinte e Nove e Itapoã 2 (V9T2). A disputa resultou em 489 homicídios consumados e tentados ocorridos de 2018 a agosto deste ano. Formados na década de 1990, os grupos começaram a se articular efetivamente a partir de 2015, foram alvos de megaoperações e, agora, voltaram às ruas após uma decisão judicial que concedeu liberdade a 25 membros das duas associações. Nesta reportagem, o Correio apresenta detalhes sobre as gangues, o que está por trás dessa rivalidade e quem são as lideranças e os principais integrantes.
A criação da FBL e da V9T2 é resultado de uma rivalidade entre jovens moradores de quadras distintas. De um lado, os criminosos que moram nas quadras 6, 8 e 10 pertencem à Fábrica de Luto e são inimigos daqueles que residem nas quadras 24, 27, 28, 29, 30 e 32, no caso, da V9T2. Sem um motivo aparente, esses dois grupos passaram a disputar pontos de vendas de drogas e a agir em diversas frentes, como assaltos, roubos de veículos e em comércios, latrocínios, furtos e, principalmente, homicídios. As pichações nos muros de casas e comércios das regiões expõem o poder territorial do grupo. "O crime não admite falha", "tudo nosso" e frases em forma de homenagem aos "comparsas" assassinados, estão entre os dizeres.
O Correio obteve acesso a relatórios policiais produzidos pelas equipes da 6ª Delegacia de Polícia (Paranoá), que detalham a atuação das associações criminosas. A maioria dos integrantes da FBL e V9T2 são jovens. As lideranças de cada um dos grupos investem pesado no aliciamento de adolescentes de 12 a 17 anos e, às vezes, até mais novos. Esses menores são usados como "ponta de lança" ou executores dos crimes mais graves. "Os líderes entendem que, caso esses adolescentes sejam presos, as penas são mais brandas e logo eles estarão nas ruas para o cometimento de novos crimes. Além disso, esses menores são atraídos por dinheiro, por exemplo, e até mesmo por drogas. Chegam, inclusive, a prometer advogados", explica, ao Correio, o delegado Thiago Renz da Rocha, da 6ª DP.
Adolescentes
Os crimes de homicídios e latrocínios (roubo seguido de morte) são comumente cometidos por esses adolescentes, que recebem o aval dos chefes. Por outro lado, os líderes coordenam as ações do grupo, desde a escolha daquele que vai cometer o delito até o fornecimento de armas. A FBL tem em média 20 integrantes, já a V9T2, 19.
Os grupos não chegam a ser caracterizados como uma organização criminosa. Com base no artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 12.580/2013, "a organização criminosa é a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informal, com o objetivo de obter vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos". Já a associação, é quando três ou mais pessoas se unem para o fim específico de cometer crimes.
A estrutura das duas gangues tem líderes, mas a divisão de tarefas, por exemplo, é precária. O delegado Thiago explica que indiciar os membros por associação criminosa ainda é um obstáculo. "No geral, eles se juntam para cometer roubos, tráfico de drogas e homicídios. Mas há uma falta de organização entre eles para conseguirmos provar que estão envolvidos em uma associação criminosa. Não há, por exemplo, vínculo da gangue com contas bancárias ou um salário em que os integrantes precisam pagar aos líderes. Há pichações, mas as provas documentais são mais complicadas", detalha.
Ao serem presos por algum crime, os membros das gangues não admitem a associação ao grupo. Outra barreira que dificulta o trabalho da polícia nessa determinação é a falta de testemunhas, que temem retaliação e, por isso, evitam prestar depoimentos na delegacia. Muitas das informações colhidas pelos policiais chegam por meio de denúncias anônimas. Outra característica presente nesses grupos são as tatuagens com os nomes das respectivas associações criminosas. Alguns dos membros deixam claro o vínculo à quadrilha por meio de frases escritas nos dedos das mãos.
Algumas denúncias anônimas recebidas recentemente pela PCDF atentam para uma maior organização dos bandos. Em uma delas, um denunciante alegou que as quadrilhas cogitam estipular o pagamento de uma mensalidade mensal por parte dos integrantes. Para a polícia, a informação é preocupante e exige monitoramento. "Elas estão chegando em um nível que nós não queremos. Não são, claro, grupos que andam fortemente armados e tomam de conta das ruas, mas têm armas. A polícia tem feito um trabalho de repressão para impedir o fortalecimento desses grupos", afirma.
Matança
A FBL, também conhecida como Comando Bala Voa (CBV) — mesmo nome dado a uma gangue do P Sul —, é chefiada por Saimon Pedro Graciano de Sousa, atualmente preso. Quando adolescente, o acusado participou de mais de 10 homicídios na região e é considerado um criminoso de alta periculosidade. Na V9T2, a liderança ainda é desconhecida pela polícia. Até junho de 2021, quem comandava o grupo era Roniely Rodrigues Sousa Marques, mas ele foi executado a tiros por dois integrantes da FBL, Vinicius Ricardo Nunes e Fernando Fagner Oliveira.
O assassinato de Roniely ocorreu em 4 de junho de 2021. As investigações apontam que os autores do homicídio acreditavam que a vítima tinha matado o sobrinho de Fernando. De dentro da cadeia, Fernando deu o recado que invadiria a casa de Roniely e o mataria. A execução do então chefe da V9T2 causou alarde entre os grupos e três membros da FBL foram mortos entre 15 de agosto de 2021 e 12 de setembro do mesmo ano.
Após a morte de Roniely, quem assumiu a chefia da V9T2 foi Wendell Nascimento. Ele chegou a ser preso no âmbito da operação Finis, em maio de 2022, mas acabou executado em fevereiro deste ano pelos rivais. Desde então, a quadrilha segue sem uma nova chefia conhecida pela polícia.
Ocorrências
Os números obtidos pelo Correio escancaram a violência no Paranoá e Itapoã. Em 2018, foram registrados 100 casos de homicídios consumados e tentados. Em 2019, a quantidade foi de 105. Um ano depois, em 2020, as cidades, juntas, chegaram ao total de 116 ocorrências do tipo. Em 2021, foram 50 e, em 2022, 49. Neste ano, 69 pessoas morreram ou foram vítimas de tentativas de homicídio.
Mesmo presos no Complexo Penitenciário da Papuda, os integrantes das gangues conseguem repassar recados para quem está de fora e aproveitam da saída temporária — benefício concedido pela Vara de Execuções Penais — para "acertar as contas". Em 2021, por exemplo, a Justiça concedeu quatro saidões, o equivalente a 18 dias. Nesse período, ocorreram três homicídios consumados e três tentados entre os rivais.
A 6ª DP é a delegacia responsável pelas duas regiões. A Seção de Investigação de Crimes Violentos (Sicvio) é composta por uma equipe de apenas sete policiais, sendo que três são encarregados pelos casos de homicídios, outros três pelos roubos e um fica responsável por chefiar o setor. Apesar do baixo efetivo, a PCDF monitora a atuação dessas gangues e, com frequência, desencadeia operações repressivas. Em maio de 2022, a operação Finis cumpriu 59 mandados de prisão e 37 mandados de busca e apreensão. Foram presos na época 25 membros da FBL e V9T2. No entanto, uma decisão judicial deferida pela Justiça do DF colocou nas ruas todos os detidos este ano. "É uma preocupação, porque temos percebido que os números de crimes voltaram a subir, mas temos feito um trabalho ágil para garantir a segurança da população", finalizou o delegado.
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