O uso do transporte pirata na capital federal tem preocupado as autoridades locais. O custo, aparentemente mais baixo, e a oferta de veículos atraem muitos passageiros, que, em meio à precariedade do sistema público, subestimam os riscos associados a essa prática ilegal e perigosa. A questão ganhou a atenção do poder público e dos cidadãos, após uma funcionária de uma cafeteria da Asa Norte ter sido sequestrada, ao entrar em um veículo de lotação pirata.
Apesar do caso, a rotina do transporte pirata em Brasília continua inalterada. Logo pela manhã, quando milhares de cidadãos movimentam a capital, enquanto se dirigem ao trabalho e outros destinos, o cenário de paradas cheias e coletivos lotados é atravessado pelos gritos de "agentes", que oferecem viagens a regiões variadas do DF e Entorno.
A equipe de reportagem do Correio visitou um dos pontos conhecidos de cometimento de irregularidades e flagrou a ação. Não é incomum ver na Rodoviária do Plano Piloto vans e veículos particulares oferecendo "caronas" em locais próximos aos abarrotados pontos de ônibus. De um carro saem quatro, cinco pessoas. Outros estacionam nas paradas, anunciando de dentro do veículo itinerários altamente procurados, como Varjão, Planaltina e Sobradinho, por valores apenas R$ 0,50 mais caros que a passagem normal.
Para tocar o empreendimento ilegal, os responsáveis podem ser violentos. A equipe tem que tomar cuidado para não ser notada pelos "donos" do espaço e conseguir averiguar a situação. "Eles partem pra cima mesmo", diz um dos passageiros que esperam, preocupado com a segurança dos repórteres.
Ilegalidade
De olho fixo no horizonte, aguardando o tão esperado "baú", o vigilante Evidarius Remo, 40 anos, desabafava sobre a qualidade do serviço prestado. "Estou esperando aqui tem mais de hora, e o ônibus falhou. O próximo só passa daqui a 50 minutos", afirmou.
O cansaço e a demora fazem com que o transporte "alternativo" fique mais atraente. Um dia depois do sequestro da funcionária de uma cafeteria, essa ainda parece uma opção válida. "Tem que ver quando foi o último caso antes desse aí. Para mim, foi algo atípico. Estou cogitando pegar", disse.
A conversa chama a atenção de uma usuária. A diarista Sabralis Evangea, 52 anos, moradora de Vicente Pires, aponta que os loteiros só prosperam devido à ineficiência do serviço prestado pelo governo local. "Antes levava só 15 minutos para chegar aqui, agora demoro 1h30. Não julgo aqueles que pegam carro pirata, o que não dá é ficar 'morando na parada'", comentou.
Ela ainda ressaltou que parte do cenário vem da falta de atuação do Poder Público. "O transporte pirata só vai acabar quando o público funcionar. Quem faz o passageiro (usar esse tipo de transporte) não fica nas paradas, quem controla os ônibus não os pega. Assim fica difícil ter solução", reiterou.
Ineficiência
O especialista em segurança pública Antônio Suxberger, professor de direito do Centro Universitário de Brasília (Ceub), avalia que a precariedade dos veículos e a baixa quantidade de linhas nas áreas de expansão urbana das regiões administrativas explica a adesão dos passageiros ao transporte ilegal. "O transporte clandestino nem sempre é mais barato que as opções oficiais, mesmo assim acaba sendo a escolha inevitável para os usuários. A ausência de ação do Estado nesse contexto é a principal razão do uso do meio clandestino", completa.
A ineficiência do serviço público não impede que a alternativa pirata apresente risco ao passageiro. Segundo o Suxberger, "não há regulamentação de segurança, prevenção de acidentes ou formação adequada dos condutores. Em suma, os padrões mínimos do transporte de pessoas não são seguidos". Por outro lado, o rigor da legalidade previne situações arriscadas.
"A mobilidade urbana é reconhecida como um fator que afeta a qualidade de vida de todos. Os problemas causados pela má condição da mobilidade urbana vão além das rotas percorridas: afetam a qualidade de vida e o progresso geral dos cidadãos", elenca Antônio.
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O outro lado
A Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) explicou que o sistema de coletivos do Distrito Federal opera com cerca de 2.800 ônibus. Os veículos atuam em 850 linhas, com aproximadamente 19.650 viagens por dia útil. No ano passado, a pasta investiu R$ 890 milhões no sistema.
A Semob também informou, em nota, que vem realizando projetos a fim melhorar o serviço oferecido. "A pasta destaca as Parcerias Público Privadas (PPP) de concessão da gestão do Metrô e da Rodoviária do Plano Piloto, a implantação do VLT, os estacionamentos rotativos e a construção da Saída Norte, que prevê a implantação de BRT para atender as cidades da região."
Fiscalização
Vale lembrar que realizar transporte pirata é ilegal. De janeiro a julho deste ano foram registradas 1.123 autuações desse tipo de ocorrência. Essa prática é fiscalizada pelo Departamento de Trânsito (Detran), em blitzes de rotina, realizadas no trajeto das linhas de ônibus. Além disso, outras abordagens são implementadas para lidar com o cenário.
"O Detran participa de operações conjuntas com a PMDF, Semob e ANTT em pontos previamente estabelecidos, através do levantamento de inteligência e demandas oriundas da Ouvidoria, do Conselho Comunitário de Segurança e Administrações Regionais", afirma o órgão.
Quem for flagrado é autuado, com base no Art. 231, inciso VIII do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A infração é de natureza gravíssima e resulta em multa de R$ 293,47 e remoção do veículo.
Colaborou João Carlos Silva*
*Nomes fictícios usados para preservar a segurança dos entrevistados
*Estagiário sob a supervisão de Suzano Almeida