FAMÍLIA

Crônica da cidade: Uma bisavó viajante

"Lá se foi dona Elda para a Nova Zelândia, acompanhar o filho e a neta numa excursão pra lá de especial: assistir ao nascimento da quarta bisneta do outro lado do mundo"

Envelhecer não é tarefa para amadores. As realidades que aplacam o processo de ficar mais velho vão desde as limitações impostas pelo corpo aos estigmas que acompanham esse passar de anos, essencialmente nas sociedades ocidentais. Mas tem gente que tira de letra e dá exemplo de resiliência e de sabedoria.

Minha avó é uma dessas pessoas. Na família, ela é a nossa guru, o nosso ponto de referência. Termo mais adequado talvez seja anciã, no sentido que os indígenas empregam, sem qualquer traço de preconceito ou significado pejorativo. A pessoa que carrega extensos saberes e é a guardiã de um povo. Conselhos de qualquer tipo, colo para os momentos de angústia, mingau com creminho por cima para aplacar a fome.

Aos 91 anos, ela é exemplo de lucidez e de equilíbrio. Mesmo quando o corpo castiga, deteriorado pela ação do tempo sobre as articulações, a cuca segue no lugar, guiando os passos sem pressa e com precisão. Os filhos, dedicados e amorosos, às vezes até pecam pelo excesso no cuidado, mas foram ensinados desde cedo a deixar as asas livres para alçar voo. E assim se fez uma vontade da matriarca que surpreendeu os espectadores desavisados.

Lá se foi dona Elda para a Nova Zelândia, acompanhar o filho e a neta numa excursão pra lá de especial: assistir ao nascimento da quarta bisneta do outro lado do mundo. A decisão foi tomada no último mês da gestação e a pressa era grande. Em menos de duas semanas providenciaram passaporte, visto e passagem. Tempo suficiente para a vovó costurar o enxoval que queria levar e presentear a mais nova integrante da família. A máquina de costura quase a deixou na mão, mas depois de um pouco de óleo "nas juntas" e alguns ajustes, pegou o ritmo e voltou a funcionar.

Lá se foram os três, atravessar o Pacífico para visitar a família que renascia com a chegada da bebê tão aguardada. Quase 24 horas depois, os viajantes alcançaram o destino.

Não deu outra. Foi só a bisa, o avô e a tia aterrissarem que, no dia seguinte, a neném nasceu, linda e saudável. As luzes do lado de cá do globo se acenderam em sinal de celebração. A família em festa pela nova vida e pelo privilégio do convívio de tantas gerações.

A intensidade de cada momento é compartilhada por fotos, vídeos e mensagens de texto. Uma conexão inimaginável quando os quatro filhos da vovó nasceram. E ela acompanha as mudanças com serenidade. Usa o celular para matar a saudade dos netos e receber notícias dos bisnetos. Atende às ligações diárias dos filhos e conta como foi o seu dia. Os gamers da atualidade certamente se inspiraram em algumas avós para criarem expressões populares em seus universos. Muitas, como dona Elda, podem dizer que "zeraram a vida".