Em um mundo totalmente digital, as câmeras analógicas têm mostrado que o passado não é artigo exclusivo de museu. Na capital do país, abandonar a captura instantânea na hora do clique está em alta. Seja pelo sabor da nostalgia, pelo processo artesanal ou por tirar do fundo do baú aquela máquina fotográfica antiga esquecida pelo tempo.
O Cine Foto JM existe em Brasília desde 1980 e, até hoje, revela filmes. O atendente da loja Eldis Luis, 46 anos, conta que tem percebido uma procura maior do público jovem para relevar as imagens. Um exemplo é o jovem estudante de audiovisual João Inti Amaral, 22, que, em 2019, foi encorajado por um amigo a consertar a câmera analógica do pai e, desde então, tem utilizado a máquina com frequência. Quando começou, há quatro anos, com R$ 20 dava para comprar um filme. "É difícil achar um bom filme por menos de R$ 50. O que eu comprava por R$ 20, hoje em dia, custa em torno de R$ 100", relata.
Para o estudante de audiovisual, a principal diferença é que as fotos analógicas são mais bonitas. "Tem um toque mágico. E quando você está fotografando com a analógica, por você ter poucas poses, você pensa um pouco mais antes de cada foto. Então, o processo é mais lento, não é aquela coisa imediata que você chega em casa e já vê as fotos. Você, às vezes, passa um mês com um rolo na câmara, naquela ansiedade, para ver como é que vão sair as fotos", explica João.
Bernardo de Oliveira, 27, se interessou pela fotografia analógica aos 23 anos, e decidiu abrir o próprio laboratório — o Granulado, localizado na 411 Norte — para revelar os melhores momentos da sua vida e da vida das pessoas que encontravam filmes perdidos em casa. Ele acredita que a procura tem aumentado entre os adolescentes pelo desejo de experimentar o novo, já que a geração Z não vivenciou esse período.
"Aqui na loja, acabo ensinando a esse público, dando suporte para aproveitar melhor a câmera e o filme", conta. No último mês, aproximadamente 9.360 fotos de filmes de câmera analógica foram revelados na loja. O empresário destaca, ainda, a clientela da geração passada que, às vezes, descobre filmes esquecidos em suas casas e decidem trazer luz a momentos da infância, agora em contraste com a idade adulta. Entre as preciosidades reveladas, Bernardo destaca a história de um cliente que encontrou, em um rolo antigo de filme, imagens da construção da Ponte JK.
Olhar mais perspicaz
Mesmo com a indústria das câmeras investindo ao máximo em megapixels nos dispositivos ofertados ao mercado, a fotografia analógica seduz mais adeptos. O editor de vídeo Carlos Eduardo foi inserido nesse mundo em 2021, quando comprou uma lente que imediatamente o cativou com seus efeitos visuais únicos. A fascinação despertou um novo hobby: a busca por câmeras antigas. Assim, passou a se juntar a grupos de colecionadores e frequentar feiras de trocas atrás de suas novas relíquias.
"Foi recente minha descoberta, mas intensa", confessa Carlos, um fotógrafo profissional que vê no retrato de filme uma forma de aperfeiçoar sua abordagem. Ele ressalta que a utilização de câmeras analógicas tem contribuído significativamente para aprimorar suas habilidades de composição e perspectiva. "A limitação imposta pela quantidade de filmes disponíveis faz com que eu me torne um fotógrafo mais observador e perspicaz, diminuindo os meus erros", explica.
Além das imagens capturadas, Carlos acumula uma coleção de experiências relacionadas à fotografia, uma vez que cada clique representa não apenas uma imagem, mas também uma história que ele guarda com carinho. Uma imagem significativa na coleção do fotógrafo é a de sua mãe, Arilma Evangelista, que celebrou 60 anos em 24 de dezembro. Ele a descreve como alguém gentil, que coloca os outros acima de si mesma. "Ela nunca espera nada em troca e eu nunca vou conseguir retribuir à altura o fato de ela ter me dado tudo que eu precisava nesta vida para ser uma pessoa determinada", ele descreve, emocionado, referindo-a a uma foto tirada enquanto estavam indo a um mercado, em um dia comum, quando capturou um momento de cumplicidade entre avó e neta.
Estética diferenciada
Outro apaixonado pelos processos antigos é o fotógrafo Rinaldo Morelli, 58, que vive mergulhado no universo da fotografia há 40 anos e, desde o começo da carreira, usou os dispositivos analógicos. "Em meu trabalho pessoal, há lentes analógicas de 30, 40 ou 50 anos de fabricação. Sempre estou, em paralelo, desenvolvendo algum ensaio com elas", conta.
A respeito da diferença do digital e do analógico, ele explica que a visualidade e o processo do fazer são diferentes. "Há uma estética diferente nas imagens feitas por lentes construídas antes da tecnologia e nas lentes para fotografia digital. Temos o suporte do filme e do processo de revelação que contribuem para um resultado visual muitas vezes diferente de fotos feitas por equipamentos digitais com imagens fixadas nos sensores digitais das câmeras", argumenta o fotógrafo.
Assim como os outros admiradores da fotografia analógica, Morelli conta que o que mais gosta é o tempo e o mistério. "Há uma distância entre o clique e o resultado pronto, o fazer é degustado com mais vagar. O desafio técnico é instigante, e este fazer tem um mistério, um segredo. A fotografia digital transformou em instantaneidade. O digital matou parte da magia", conclui.
Processo químico
A professora de fotografia do departamento de artes da Universidade de Brasília (Unb) Ruth Sousa coordena o laboratório de processos alternativos em fotografia. "Quando cheguei no departamento, em 2013, não existia esse laboratório voltado para esses processos artesanais da fotografia", conta.
No espaço, a professora testa os processos químicos na hora de revelar uma foto, com os regentes fotossensíveis. "Misturamos diversos químicos para ver o resultado final que vai dar", explica. "Quando tiramos fotos do celular, pulamos todo esse processo artesanal, que é um barato, porque vemos que o azul, o vermelho, não são apenas cores, eles são processos químicos", conclui.
Ruth explica que a relação com o tempo mudou desde que entendeu os processos por trás da fotografia analógica. "Comecei a lidar muito melhor com o tempo, o que seria visto como um erro, na verdade, é fruto de um processo químico e da maneira que aquilo é feito, isso acaba ensinando até mesmo sobre a vida", relata a docente. As fotos tiradas e reveladas no laboratório são posteriormente expostas na UnB.
*Com Anna Beatriz Santos, estagiária sob a supervisão de Patrick Selvatti
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