Tragédia

Policial morta deixa legado de luta em favor das mulheres

Valderia da Silva, a policial civil morta pelo ex-marido com 64 facadas, foi homenageada diante de forte clima de comoção e revolta durante o velório

Um aparato de centenas de policiais, bombeiros, amigos e familiares e um protesto por Justiça marcaram o adeus à agente da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) Valderia da Silva. Aos 46 anos, a servidora pública, então lotada na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam 2), foi brutalmente assassinada pelo ex-marido com 64 facadas dentro de casa, em Arniqueiras, e se tornou a 23º vítima de feminicídio da capital em menos de oito meses. Leandro Peres Ferreira, 46, estava foragido desde sexta-feira. Após uma mobilização das forças de segurança do DF e de Goiás, o criminoso de Brasília faleceu depois de entrar em confronto com policiais militares.

No começo da tarde de ontem, a PCDF fez um cortejo em homenagem à policial. Dezenas de viaturas da Polícia Civil, da Polícia Militar (PMDF) e do Corpo de Bombeiros (CBMDF), além de helicópteros, saíram da Delegacia-Geral da PCDF rumo ao cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul, local onde Valderia foi velada. Depois, o corpo seguiu para Formosa para ser cremado. No cemitério, colegas da vítima ergueram faixas com pedidos por Justiça. "Homens, parem de nos matar" e "Que a luz nos guie no combate à violência contra as mulheres" estavam entre os dizeres.

Sob um clima atípico para a época de seca, a tarde nublada foi marcada por tiros de festim para o alto e uma chuva de pétalas que homenageou o legado da policial assassinada. Por muito tempo, a experiência de crescer em uma sociedade machista fez com que a mãe, Maria José da Silva, desejasse não ter uma filha. "A mulher tinha muita humilhação, e eu passei por muita coisa ruim na minha vida", lembrou. 

"Uma pessoa fantástica e uma policial maravilhosa", ressaltou Wellington Balbino, ex-colega de trabalho e amigo próximo da vítima. Ele contou que trabalharam juntos na Seção de Investigação de Crimes Violentos na região administrativa do Sol Nascente, que abriga 79 mil moradores. "A Val era uma policial sensacional. Eu trabalhei com ela há 11 anos no Sol Nascente, e nossa equipe conseguiu controlar a criminalidade ali", disse.

Segundo o policial, depois que recebeu a notícia da morte da amiga, ele não parou de trabalhar até recolher o máximo de informações sobre o feminicida, que fugiu após o crime. "Nós pegamos vídeo no banco, ele sacando dinheiro, andando a pé na rua. Foi uma coisa muito muito corrida. Foi assim de dia e de noite, correndo atrás dessas informações", relatou. "Graças a Deus, ele teve um destino. Está morto, não vai mais fazer mal para ninguém, não vai mais atrapalhar a vida de ninguém".

Enoque Venâncio, presidente do Sindicato dos Policiais Civis no Distrito Federal (Sindipol-DF), afirmou que o fato de a vítima ser uma policial civil da Delegacia da Mulher (Deam) levanta dúvida sobre em qual ambiente as mulheres estão realmente seguras. "O que choca é o tanto que ela era testemunha de violências como essa. Ela era combatente na defesa da sociedade, trabalhava em uma delegacia especializada para combater esse tipo de crime horrível", comentou o presidente. "Ela, como policial civil na Deam, ser uma das vítimas, faz com que a gente faça uma reflexão sobre essa sociedade machista e essa cultura de pertencimento", completou Venâncio.

"A gente precisa falar para toda a sociedade se envolver, sim. Em briga de marido e mulher, nós temos que meter a colher", acrescentou. Para a secretária da Mulher, Giselle Ferreira, o resultado do assassinato de Valderia explicita o fato de que todas as mulheres estão vulneráveis a esse tipo de crime, e reforça que o seu trabalho é dar informação necessária às mulheres vítimas de violência doméstica para perceberem os sinais antes da consumação do feminicídio. "A gente precisa colocar a mulher para entender que a violência cresce. Começa com palavras, com um empurrão, até chegar nesse feminicídio. Precisamos estar atentas a esses sinais".

Marcelo Ferreira/CB/D.A Press -
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press -
Divulgação/PCDF -
Arquivo pessoal -

Robson Cândido, delegado geral da PCDF, lamentou a morte de Valderia e frisou que a instituição está empenhada em prestar as homenagens à vítima e à sua família. "Infelizmente o destino nos levou a isso, mas, hoje, nós estamos aqui pra fazer esse voto em homenagem a ela, homenagem aos familiares e dizer que estamos aqui com vocês. É um um momento de muita tristeza, mas que a gente tem que superar. Que isso seja mais uma lição para todos nós, policiais civis".

Ben-Hur Viza, representante do juizado de violência doméstica do Núcleo Bandeirante, relembrou a importância de as mulheres registrarem ocorrência e solicitarem a medida protetiva, desde os primeiros sinais de violência, mesmo que não haja agressões físicas. "São os pequenos sinais de que a coisa está se agravando, e uma hora chega no máximo, que é o feminicídio. As violências passam por questões em função de cabelo, um tapa, um empurrão, obrigar pessoas a silenciarem, controlar a roupa, controlar o lugar onde vão, controlar relacionamentos e amizades, controlar a senha de rede social, todo esse controle é um sinal de que o homem está avançando numa área que é perigosa para a mulher", destacou.

"A violência doméstica não é essa violência comum, como roubo, sequestro, não. Ela tem características próprias das pessoas de gênero, e precisa ser trabalhada com esse olhar diferenciado. Não dá para pensar diferente", enfatizou ainda o juiz. Segundo Ben-Hur, a medida protetiva exerce um papel importante, pois mostra ao agressor a seriedade que o Estado tem em relação ao feminicídio. "É um freio, uma manifestação de que o Estado está se opondo a esse tipo de violência. Quando o agressor vê que o Estado está intervindo, percebe um pouco mais a seriedade. Se quiser matar, vai matar sim, mas a gente tem vários dispositivos que podem ser usados para proteger essa mulher", completou.

O secretário de segurança do DF, Sandro Avelar, vice-governadora, Celina Leão, e a ex-primeira dama da República Michelle Bolsonaro também estiveram na cerimônia de despedida da policial.

Fuga e morte

Valderia morreu dentro de casa, ao ser esfaqueada com 64 golpes, segundo laudo do Instituto de Medicina Legal (IML). O corpo da policial foi encontrado pelo filho dela, de 24 anos, por volta de 12h30. Para a polícia, não há dúvidas de que o feminicídio tenha sido premeditado e planejado nos mínimos detalhes.

No dia do crime, câmeras de segurança flagraram o homem entrando no condomínio da vítima em um Ford Fiesta vermelho. Ele permaneceu por cerca de três horas no local. Pouco tempo depois, ele saiu em fuga. Sacou um total de R$ 10 mil em uma agência bancária e foi visto numa loja, logo depois,  pegando uma bicicleta que estava em revisão. Mais tarde o carro foi encontrado abandonado na casa da mãe do suspeito, em Taguatinga Norte.

De imediato, a polícia deu início às diligências, em busca de qualquer informação que levasse ao paradeiro de Leandro. Comerciantes e moradores de Taguatinga Norte foram orientados pela corporação a consultar as imagens do sistema de videomonitoramento para verificar o destino tomado pelo acusado, visto que ele saiu da EQNL 10/12 com rumo à QNL 12 e Setor H Norte.

No sábado, policiais civis do DF confirmaram que Leandro havia fugido para Porangatu (GO) e viajaram até o município goiano. Ao Correio, o tenente-coronel Evando Polidorio Lustosa, comandante do 3º Batalhão da PMGO, afirmou que o suspeito acionou um transporte por aplicativo, por meio de um celular que pegou emprestado em um posto de gasolina da região. Ele ofereceu R$ 3 mil ao motorista para ser levado ao Maranhão. O homem, no entanto, afirmou que teria que passar em casa antes e, nesse momento, Leandro saiu do carro e deixou o dinheiro no banco de trás do veículo.

"O motorista notou que tinha algo de estranho e procurou a polícia. Quando ele nos contou a história, mostramos a foto disse que, de fato, parecia muito com o cliente. Começamos a procurá-lo em um raio de 5km a 7km da via que dá acesso à Tocantins, quando o encontramos a pé e sozinho", afirmou o tenente-coronel.

De acordo com o PM, no momento em que as equipes se aproximaram, Leandro atirou contra os policiais. Ele estava em posse de uma arma de fogo calibre 32. Para revidar a agressão, os policiais revidaram o ataque. Ferido, o agressor chegou a ser atendido pelo Corpo de Bombeiros, mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Com a morte do principal suspeito do feminicídio, o inquérito deve ser concluído nos próximos dias.

Repercussão

A morte de Valderia repercutiu em toda a capital e até no Brasil. Policiais de todo o país compartilharam fotos de Leandro, ainda quando ele estava foragido, além de pedidos por Justiça e políticas de combate à violência contra a mulher. A autora, escritora e produtora brasileira Glória Perez usou o Instagram para publicar a foto de Leandro. Na legenda, a roteirista escreveu: "Esse covarde matou a ex-mulher, policial e chefe da Delegacia de Atendimento à Mulher da PCDF, com 64 golpes de faca, porque ela não queria mais viver com ele". 

Ontem, durante a inauguração do restaurante comunitário do Sol Nascente, o governador Ibaneis Rocha (MDB) comentou sobre o caso. "Estamos trabalhando muito sobre essa questão do feminicídio, juntando todas as secretarias e fazendo uma divulgação forte do número 180. Mas esse é um problema social, não só no DF, mas no Brasil todo. Precisamos de uma política nacional para isso. Felizmente, esse bandido está morto", disse.

Violência contra a mulher no foco

O Núcleo Judiciário da Mulher (NJM), o Laboratório de Inovação Aurora e a Assessoria de Comunicação Social (ACS) organizaram, ontem, o evento Diálogos com a imprensa, voltado a jornalistas, editores e assessores de comunicação. A ação contou com a participação da juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) Fabriziane Zapata e da diretora e editora-chefe do Instituto Patrícia Galvão Marisa Sanematsu.

Fabriziane Zapata apresentou dados e pesquisas acerca do tema, além de chamar atenção para a importância dos programas de reeducação do agressor, frisando que a abordagem não deve se restringir à narrativa policial, mas abranger os encaminhamentos a serviços psicossociais de atenção à mulher e ao homem.

Marisa Sanematsu ressaltou que "todo feminicídio poderia ter sido evitado se houvesse interferência anterior", daí a importância da imprensa apontar soluções, falar sobre direitos, divulgar campanhas e, sobretudo, contar a história das mulheres que sobreviveram.

 

Colaboraram a repórter Letícia Mouhamad e os estagiários João Carlos Silva e Ana Luíza Moraes sob a supervisão de José Carlos Vieira