A miséria e a vulnerabilidade causadas pelo vício em drogas, o desemprego e a falta de oportunidades levam milhares de moradores do Distrito Federal a buscarem as ruas como única alternativa de sobrevivência. Pessoas em situação de rua e especialistas ouvidos pelo Correio apontam que é preciso um olhar mais sensível do governo às necessidades de cada um, para que sejam traçadas políticas públicas direcionadas às diferentes vulnerabilidades que atingem aqueles que vivem sem um teto sobre suas cabeças.
Atualmente, segundo dados do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF), 2.938 pessoas estão em situação de rua no Distrito Federal. No entanto, de acordo com o governo, há apenas 2.032 vagas nas unidades de acolhimento institucional disponibilizadas às pessoas em situação de vulnerabilidade social. A conta não bate.
Segundo o presidente do Instituto Barba na Rua, Rogério Barba, que existe desde 2015 e atua em contato direto com essa população, ela oscila entre 4 e 5 mil pessoas. "As estatísticas oficiais não calculam as pessoas que moram no Entorno, passam a semana no Plano Piloto, e voltam para casa aos fins de semana. Muitos deles não têm dinheiro para ir e voltar para casa de ônibus todos os dias e acabam ficando nas ruas. Hoje em dia, muita gente usa as ruas para trabalho, vigiando carros, mas mora longe e não tem condições de voltar para casa todos os dias. Essas pessoas não são contabilizadas pelo governo como pessoas em situação de rua, mas vivem em situação de vulnerabilidade", explica.
Superação
Rogério Barba viveu em situação de rua durante 25 anos. Hoje, recuperado do vício em álcool e crack, ele lidera o instituto que leva seu nome e realiza um trabalho direcionado à população que vive nas mesmas condições que ele viveu durante metade da sua vida. "Nasci nas ruas em 1971 e fui levado para um orfanato. Meu nome quem me deu foi um juiz. Nunca conheci meu pai nem minha mãe. Fui viciado em crack e álcool de 1989 a 2014 e, graças a um projeto chamado Cristolândia, realizado em São Paulo, de onde eu vim, me recuperei. Mas, continua sendo uma luta diária ficar longe das drogas. Para isso, trabalho o poder da mente. Meu trabalho nas ruas é uma terapia", relatou.
Hoje, além de presidir o instituto que leva seu nome, Barba é diretor institucional da Revista Traços e tem um programa semanal de televisão na TV Comunitária, onde é definido como "porta-voz das ruas". Para ele, o Distrito Federal carece de uma política pública que considere as peculiaridades de quem está nas ruas. "Há pessoas desempregadas, outras com vício em drogas, outras com problemas de saúde mental. O governo precisa entender as necessidades de cada um para dar a saída correta", argumenta. "O maior alicerce para uma pessoa em situação de rua é o emprego. Transformação de vida só vem com trabalho, é o que dá dignidade às pessoas", acrescenta.
Aos sábados, Barba vai às ruas com a equipe do instituto levar comida à população de rua. "Conversamos com eles, entendemos as necessidades e vemos a melhor forma de ajudá-los", comenta. "Também temos um ônibus com chuveiro onde eles podem tomar banho e fazer a higiene. Em breve, vamos oferecer oficinas de fabricação de chinelo e conserto de celular. É uma forma de ajudá-los a empreender", completa.
Cenário
Segundo a política de assistência social, pessoas em situação de rua incluem-se em um grupo populacional heterogêneo, que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares fragilizados ou mesmo rompidos e a ausência de moradia convencional regular.
Theresa Raquel Miranda, socióloga e coordenadora executiva do Instituto Cultural e Social No Setor, lembra ainda que, conforme dados do IPEDF, de 2022, essa população tem predominância de pretos e pardos (71%) e de indivíduos do sexo masculino (80,7%). Quase metade (47, 2%) tem entre 31 e 39 anos e mais de 50% se dizem insatisfeitos com essa condição.
Além disso, a especialista explicou que estar em situação de rua envolve motivos diversos, entre eles, questões transitórias e permanentes. O custo alto do transporte público para retornar para casa, a grande distância entre moradia e local de trabalho, os conflitos familiares, a falta de acesso à consulta médica, o desemprego, o uso arriscado de álcool e outras drogas, a situação socioeconômica do país e os transtornos mentais são apenas alguns exemplos.
"Idealmente, deveríamos diminuir a desigualdade social, apoiar a economia solidária e criativa, reestruturar as práticas escolares e fortalecer políticas públicas de assistência social e de saúde", pontua. Considerar as consequências sociais e psicológicas da condição de extrema vulnerabilidade é, também, o ponto de partida para a aplicação dessas propostas.
"Na realidade, temos políticas que, de fato, reconhecem a necessidade de apoio social e acompanhamento em saúde mental, mas esbarram em estereótipos, resultando em controle social e em princípios higienistas", examina Theresa.
Para Maria Lúcia Lopes da Silva, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB), o número de pessoas nas ruas aumentou por causa do aumento do desemprego, pela queda salarial, pelo trabalho precário, associado à insuficiência das políticas sociais. "As políticas sociais são insuficientes, são limitadas, muitas delas não saem do papel. Os caminhos para solucionar os problemas começam pela destinação de recursos. Sem destinação suficiente de recurso às políticas sociais não tem como inibir esse fenômeno. É preciso políticas de trabalho e de moradia", analisa. "As políticas precisam ser articuladas e interligadas", conclui.
Vulnerabilidade
Três madeiras, plástico e duas cobertas são o que sustentam o barraco onde Maria das Graças Costa, 60 anos, vive. Há dois anos na rua, ela contou que o vício em drogas, principalmente do marido, colocou o casal nessa situação, ainda quando moravam no Paraná e ganhavam a vida como muambeiros. No DF, estabeleceram-se na 902 Sul, próximos ao Centro Pop, onde pegam comida diariamente.
Hoje, o casal conta apenas com o auxílio de R$ 600 do governo federal e com pequenas ajudas que, vez ou outra, aparecem. "Pela minha idade, não tem mais trabalho que me aceite", lamenta Maria. A roupa do corpo, segundo ela, está suja, pois não conseguiu lavar no local onde também se alimenta. "Não havia torneira disponível. Fico envergonhada de estar dessa forma", comentou.
Para ela, os serviços assistenciais deveriam filtrar as situações daqueles que mais precisam, a fim de efetivar as medidas. Maria queria, por exemplo, se aposentar, mas relata que resolver qualquer questão social demanda paciência com as burocracias. "As pessoas precisam entender que não é só de comida que a gente precisa", destacou.
Políticas públicas
A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) afirma que o Governo do Distrito Federal (GDF) tem ações que vão do acolhimento à conquista das autonomias das pessoas nas ruas. "Atualmente, são 70 unidades de acolhimento institucional destinadas à população em situação de vulnerabilidade social. No total, temos 2.032 vagas. As unidades ofertam cinco refeições por dia aos acolhidos", informou a pasta, em nota.
Dois Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros Pop) funcionam, diariamente, a partir das 7h e servem como ponto de apoio durante o dia. Neles, é possível acessar espaços para guarda de pertences, higiene pessoal, alimentação (café da manhã, almoço e lanche) e provisão de documentação, além de prestar informações, orientações sobre os direitos e viabilizar o acesso a outros serviços, benefícios socioassistenciais e programas.
De acordo com o GDF, mais de 400 pessoas são atendidas todos os dias em cada uma dessas unidades. Ao todo, há 28 equipes do Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas), sendo elas referenciadas aos 12 Creas e aos Centros Pop. Essas equipes trabalham mediante mapeamentos realizados pela pasta e notificações via Ouvidoria Sedes, no 162.
Fiscalização
O Núcleo de Enfrentamento à Discriminação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) atua no fomento e no acompanhamento da implementação e da execução de políticas públicas. Em 2021, o MPDFT expediu uma recomendação dirigida às Forças de Segurança Pública do Distrito Federal, à Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal (DF Legal) e à Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal, estabelecendo, entre suas diretrizes, que os agentes públicos ajam com absoluto respeito à dignidade humana.
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