Oestado de abandono em que está o Conjunto Fazendinha, na Vila Planalto, é estarrecedor — três das cinco casas de madeira erguidas na época da construção de Brasília estão prestes a ruir e podem não resistir à próxima estação chuvosa. Construídas em 1957 e tombadas pelo patrimônio histórico do Distrito Federal em 1988, as edificações também correm risco de incêndio e precisam com urgência de obras de restauração. Desde 2013, o Governo do Distrito Federal é cobrado pela comunidade, pelo Ministério Público e pelo Judiciário a apresentar um cronograma de revitalização e executar os serviços. Naquela ocasião, o quadro já era preocupante. Ao longo da última década, tornou-se muito mais crítico.
As cinco casas foram edificadas para abrigar engenheiros, construtores e figuras importantes da República, que, então, ganhava uma nova capital. "Essas edificações têm grande importância não só histórica, porque são testemunhas da memória daquele período, mas porque são as últimas casas de madeira dentro do Plano Piloto de Lucio Costa que foram erigidas com elementos da arquitetura modernista", diz a historiadora e moradora da Vila Planalto Leiliane Rebouças.
De acordo com a historiadora, as técnicas construtivas aplicadas nas casas da década de 1950, em madeira, não existem mais em nenhum outro lugar no Brasil. "Só isso já justificaria a preservação. Mas aqui também moraram o ex-ministro do Planejamento Reis Velloso e a filha do ex-presidente Castelo Branco", conta Rebouças.
A reportagem do Correio foi ao local, que tem área de aproximadamente 30 mil metros quadrados, para ver de perto a situação do casario histórico. As três casas em situação crítica estão sob a responsabilidade da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec), que não permitiu o acesso da equipe do jornal à área interna "por uma questão de segurança". O temor da comunidade é que elas não resistam à próxima temporada de chuvas. Uma delas teve as portas saqueadas, o que danificou ainda mais a estrutura. Outra foi invadida e está irregularmente ocupada por pessoas que também sofrem com os riscos de desabamentos e incêndios. A precariedade é visível de longe, desde as paredes, corroídas pela ação do tempo e dos cupins, até os telhados, com várias buracos.
Quanto às demais casas, o GDF deixou uma aos cuidados da organização não governamental Ampare-DF e outra com a Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Pompeia. Estão menos deterioradas, mas também precisam de restauração. "Há 30 anos, a comunidade da Vila Planalto tem lutado pela preservação dessas casas que são tombadas pelo patrimônio histórico do DF. Além disso, elas estão dentro do Conjunto Urbanístico de Brasília, declarado patrimônio mundial pela Unesco", aponta.
Embate judicial
A luta pela restauração do Conjunto Fazendinha atravessou diferentes governos nas últimas décadas. Em 2013, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) ajuizou ação contra o governo do Distrito Federal (GDF) para obrigá-lo a apresentar um cronograma preciso para a revitalização do espaço. À época, o órgão fiscalizador apontou que o plano elaborado pelo próprio GDF falava apenas em curto, médio e longo prazo, sem especificar datas.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) concordou com o MPDFT e determinou, no mesmo ano, que o cronograma fosse apresentado no prazo de 90 dias. O governo recorreu, mas a decisão foi mantida. Novos recursos foram interpostos na instância superior. O último, no Supremo Tribunal Federal, não foi julgado.
Em 2023, o MPDFT ajuizou outra ação de cumprimento de sentença alegando que, ainda que não tenha havido decisão do STF, a obrigação do GDF de cumprir o determinado anteriormente persiste. Em 13 de julho deste ano, o TJDFT reafirmou a obrigação do governo de cumprir a decisão de 2013.
Nessa última ocasião, o juiz Carlos Frederico Maroja disse que preservação do patrimônio histórico e cultural de um país "deve ser motivo de muito orgulho pelos Poderes Públicos, por retratar a acumulação de conhecimento sobre o passado e servir de instrumento para o planejamento do futuro". E prosseguiu: "Não soa crível, tampouco razoável, a relutância do Distrito Federal em manter conservada a história de nossa cidade — capital republicana —, de muitos sonhos, de trabalho duro, de muitas conquistas, de tantas realizações, de concreto erguido diuturnamente às custas de empenho e enorme dedicação daqueles que fizeram história no Planalto Central".
Lentidão
Em resposta aos questionamentos do Correio, a Secretaria de Cultura argumentou, em nota, que a manutenção dos espaços culturais tombados exige alto investimento e que a pasta dispõe de poucos recursos para a área, mas que tem buscado soluções que permitam proporcionar o pleno acesso da população a esses locais.
A Secretaria diz que está em tratativas para entrega do cronograma detalhado para restauro das casas do Conjunto Fazendinha, que está sob responsabilidade específica da pasta desde 2021. Sobre as pessoas que moram irregularmente no local, a Secretaria afirmou que a desocupação está em processo, mas não informou prazos.
A Secretaria não tem previsão para o início das obras, mas garante que ações emergenciais ocorrem durante todo o ano. Fora as diretrizes do tombamento, será necessário projeto executivo próprio para edificações históricas em avançado estado de comprometimento. Segundo a pasta, o restauro é lento e deve ser feito por equipe altamente capacitada e experiente.
A pasta informa que, para garantir a transparência e os interesses da população do entorno do conjunto, os planos para a área incluem audiência pública para revelar os desejos da comunidade relativos à ocupação do espaço.
Tombamento
A diretora Cultural e de Divulgação do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-DF), Cecília Almeida, frisou que o complexo é o último remanescente edificado onde é possível observar como viviam os funcionários pioneiros em Brasília. "Além da importância de caráter histórico e social, o Conjunto Fazendinha preserva técnicas construtivas do final dos anos 1950, possuindo relevantes edificações modernistas em madeira, com soluções adequadas ao clima, à estética do movimento moderno e, principalmente, à necessidade de velocidade de construção para receber os construtores de Brasília", declarou a arquiteta. "A preservação desse conjunto é fundamental para a memória não apenas da Vila Planalto, mas para história da arquitetura do país", conclui.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) explicou, por meio de nota, que o Conjunto Fazendinha faz parte do tombamento exclusivo do GDF para a Vila Planalto. Portanto, o governo local é responsável pela preservação do patrimônio. O Iphan acrescentou que o tombamento federal do Conjunto Urbanístico de Brasília alcança a Vila Planalto, mas abrange somente a dimensão urbanística da região, com definições de preservação que não individualizam as edificações.
A comunidade da vila pioneira buscou o Iphan para tratar da possibilidade de atuação na área. A autarquia informou que está elaborando estudos para, futuramente, auxiliar o GDF na missão de preservar o Conjunto Fazendinha — possibilidade que tem sido aventada em conversas com a nova gestão da Secretaria de Cultura.