O medo e a sensação de insegurança fazem uma pessoa transexual sair menos de casa do que uma cisgênero — que se identifica com o sexo biológico. A hostilidade dos ambientes públicos se evidencia nos transportes coletivos e em carros por aplicativo, em agressões que vão desde pessoas se levantarem do banco após uma travesti sentar na cadeira ao lado até um motorista arrancar com o carro ao notar a identidade de gênero de quem solicitou a viagem.
Um levantamento feito pelo Instituto Locomotiva evidencia o grau do problema: a cada 100 pessoas trans, 44 dizem já ter sido vítimas de transfobia em ônibus ou metrôs; 22 já foram agredidas fisicamente e 23 já foram impedidas de continuar a viagem. Ao apelar para um transporte por aplicativo ou táxi, 20% desta população tem dificuldade para ter a corrida aceita por um motorista, e 22% já foram até mesmo xingadas pelo condutor do veículo.
Na segunda reportagem da série Viagem cancelada, o Correio mostra como não ter o direito de ir e vir respeitado dificulta o acesso da população trans a uma vida mais digna. Obrigada a se isolar longe dos espaços públicos, a comunidade T fica mais distante de uma oportunidade de emprego, do acesso à saúde e até mesmo da possibilidade de lazer.
- Viagem Cancelada — Capítulo I: Preconceito limita o acesso da população LGBTQIAP+ ao transporte público.
- Viagem Cancelada — Capítulo III: Com violência em táxis e aplicativos, comunidade LGBTQIAP+ tem locomoção restrita.
Vencidos pelo medo
“Infelizmente, pessoas trans saem menos de casa. É um dado extremamente assustador, exatamente porque o ambiente coletivo não é seguro. Seja um banheiro, seja uma festa ou um transporte público”, declara Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), com base nas análises feitas pela associação.
A especialista explica que um dos objetivos dos episódios de preconceito é tornar o dia a dia de mulheres e homens trans tão violento, penoso e inseguro, que a única opção dessas pessoas seja se isolar em casa e deixar de ocupar o espaço público. “Basta qualquer um se perguntar: onde estão as pessoas trans dentro dos ambientes sociais, coletivos e do transporte público?”, indaga.
“São pessoas que saem menos para trabalhar, visitam menos as suas famílias e têm menos atividades de lazer, com medo de serem agredidas na rua”, diz Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, responsável pela pesquisa. Os relatos de episódios de transfobia se acumulam, mas não são contabilizados pelo Estado. Sem o preenchimento adequado do campo de gênero das denúncias recebidas pelo Ministério dos Direitos Humanos, não há como saber quantos dos 246 casos de LGBTfobia no transporte público ou por aplicativo registrados pela pasta nos últimos três anos ocorreram com representantes da letra T.
“A ausência de dados também é resultado de uma cultura da segurança pública que cria um ambiente tão violento que as pessoas não se sentem seguras para fazer esse tipo de denúncia”, explica Bruna. Somado a isso, há uma descrença no Judiciário. “Existe um descrédito na Justiça, que não dá o devido encaminhamento aos casos, e as pessoas passam a achar que processar ou denunciar não vai dar em nada”, completa.
- 35 ANOS - é a expectativa de vida de uma pessoa transexual no Brasil;
- 77 ANOS - é a expectativa de vida da população geral no Brasil.
Violência velada
Os episódios de preconceito nos coletivos nem sempre ocorrem de maneira explícita e com agressões físicas ou verbais. A assessora parlamentar Ludymilla Santiago, 40 anos, conta que só notou muitos dos reflexos da transfobia meses depois de vivenciá-los. “Acontece de algumas pessoas se incomodarem com a sua presença em um coletivo e mudarem de lugar quando você se senta perto. No começo, você acha que é apenas coincidência, mas com o tempo e a vivência, entende que foi um processo de transfobia”, desabafa.
Ela relembra um confronto que ocorreu dentro do vagão exclusivo para mulheres do metrô de Brasília. “Assim que me sentei na cadeira, a senhora que estava ao meu lado disse que aquele não era meu vagão, e se levantou do lugar”, conta. Surpresa, Ludymilla disse que “transfobia é crime”. “Eu estava com minha irmã, fiquei nervosa e não consegui ter uma reação mais incisiva. Passar por situações como essa é uma coisa para a qual nunca se está preparado”, diz. “A transfobia diz que nós não podemos utilizar o transporte coletivo, e que se queremos ser trans, que isso seja dentro das nossas casas. Porque o objetivo dos transfóbicos é fazer com que nossos corpos trans não existam”, completa Ludymilla.
Calada a tapa por policial
O sentimento de que uma denúncia não daria em nada passou pela cabeça de uma vítima de transfobia em Pernambuco. "Seria a palavra de uma trans contra a de um policial", diz a mulher de 26 anos que levou um tapa na cara desferido por um militar que deveria protegê-la. Professora da rede municipal de Recife, ela pede para não ter o nome divulgado por temer retaliações. A violência que a mulher sofreu ocorreu em janeiro deste ano, e repercutiu em todo país após o vídeo da agressão viralizar nas redes sociais.
Em um dia de domingo, a professora estava com o companheiro em um ônibus na Zona Sul de Recife quando ouviu três passageiros a xingarem. "Meu companheiro olhou para trás e falou: 'É comigo?'. Foi nessa hora que se juntaram os três meninos que estavam lá atrás e vieram com tudo para cima da gente", conta.
Os homens, segundo ela, não usavam blusa e aparentavam estar bêbados. O motorista parou o ônibus no terminal e os agressores desceram. Ao avistar um grupo de policiais militares, a professora também saiu, para denunciar a transfobia. No entanto, antes de poder se explicar, levou um tapa no rosto desferido pelo policial. "Na hora que eu levei o tapa dele (o policial), gritei que era professora, e um outro policial já começou a pedir desculpa", conta.
Tanto o casal quanto os agressores foram levados até a Central de Plantões da Capital (Ceplanc). Ela decidiu não prestar queixa contra o grupo, pois se tratavam de moradores da mesma comunidade onde vive. Mas decidiu ir adiante na denúncia contra o PM. "Com o vídeo e a repercussão, procurei meus direitos. Eu lutei muito na minha vida para ser respeitada na sociedade como uma mulher trans. Cada dia ao acordar é uma batalha, e quando termina o dia é sempre agradecer a Deus por estar viva", diz a educadora.
Procurada pelo Correio, a Corregedoria Geral da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco informou que todas as providências disciplinares acerca do caso foram tomadas e que um dos envolvidos foi punido disciplinarmente com 21 dias de detenção. "Além disso, segue em trâmite na PMPE um inquérito policial militar que objetiva apurar possível indício de crime militar durante a ação policial", informou a corporação, em nota.
País que mais mata trans
Em janeiro deste ano, a Antra entregou ao Ministério dos Direitos Humanos um dossiê sobre o assassinato de 131 transexuais e travestis por questões de gênero em 2022 — número que deixa o Brasil na liderança entre os países que mais matam trans pelo 14º ano seguido.
Uma característica comum dos casos de LGBTfobia é a brutalidade e perversidade, diz o relatório Livres e Iguais, da Organização das Nações Unidas (ONU) pela Igualdade LGBT. "Ataques a pessoas por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero são muitas vezes impulsionados por um desejo de punir aqueles vistos como desafiadores das normas de gênero e são considerados uma forma de violência de gênero", diz a organização.
E os LGBTQIAP não são os únicos vulneráveis a essa violência: a ONU destaca que a "mera percepção de homossexualidade ou de identidade transgênero é suficiente para colocar as pessoas em risco".
As agressões que ocorrem no transporte público fazem parte de uma realidade já constatada pelos dados da Antra: é nos espaços coletivos onde mais transexuais são violentados e até mesmo assassinados. Devido aos frequentes episódios, a Antra está desenvolvendo campanhas e cartilhas com orientações de autoproteção diária para a comunidade T.
"Quando pegarem um transporte por aplicativo, compartilhem a sua localização com alguém de confiança. Quando estiverem dentro do transporte coletivo, não fiquem muito distraídas com o fone de ouvido, prestem atenção no que está acontecendo ao seu entorno. Evitem as poltronas da janela, porque nelas fica mais difícil fugir em um caso de assédio ou violência. E, principalmente, denunciem os casos e construam um ambiente social que possa reconhecer que esse tipo de violência não pode ser naturalizado", explica a especialista Bruna Benevides.
Duas perguntas para Duda Salabert, Deputada federal (PDT-MG) e mulher transexual
Levantamentos do Instituto Locomotiva e da Antra mostram que as pessoas trans usam menos o transporte público por temer o preconceito. O que pode ser feito para melhorar essa situação?
Tenho insistido em dizer que nós pessoas trans ainda não conquistamos o direito à humanidade. O acesso ao transporte público e de qualidade é fundamental para o direito à cidade, para que as pessoas possam usufruir do espaço urbano, seja para o lazer, seja para o trabalho ou o que mais a cidade ofereça. A população trans acaba habitando, em sua maioria, apenas espaços marginais, nas esquinas pela madrugada. Como consequência, fica excluída de usufruir muito do que a vida na cidade pode oferecer. É raro você ver uma travesti num shopping, se divertindo num parque ou até mesmo utilizando algum equipamento público pela manhã. Para mudar isso precisamos de um conjunto complexo de ações que combine ações pedagógicas para treinar os funcionários das empresas de transportes públicos e privados sobre a importância do respeito às pessoas LGBT, com regulações que permitam a responsabilização das empresas que violem os direitos LGBT.
Apenas um quarto dos episódios de homotransfobia nos transportes viram uma denúncia a ser investigada. O que pode ser feito para tornar mais fácil o processo de denúncia de casos de homotransfobia?
Conseguimos avanços jurídicos de reconhecer que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero não são aceitas pelas nossas leis, mas ainda há um gargalo de colocar isso na prática e começa justamente em instituições que são responsáveis pelo acolhimento e investigação. É uma série de problemas. O acolhimento é o primeiro passo. Precisamos treinar esses servidores públicos para acolher adequadamente essas denúncias. A investigação é o segundo. É comum que os investigadores não saibam perceber as especificidades das violências LGBTfóbicas ou nem as reconheçam como violência, impedindo o andamento do caso. Há também uma dificuldade que os instrumentos de coleta de informações, como os boletins de ocorrência, nem sempre possuem campos específicos que permitem identificar que a vítima é LGBT e que a motivação do crime foi a lgbtfobia. Como parlamentar tenho atuado para mudar isso. Enquanto vereadora, criei o Projeto Cintura Fina, em parceria com a secretaria municipal de BH, que tinha como objetivo ambicioso zerar as violência LGBTfóbicas na cidade. A partir dele, dedicamos uma emenda para treinar a guarda municipal em temas LGBT e também estimulamos a maior aproximação das forças policiais. Agora como deputada apresentei um Projeto de Lei para que os boletins de ocorrência de todo o país passem a identificar se a vítima é LGBT e se a motivação do crime é a lgbtfobia.
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