Questão social

Faltam políticas públicas para as pessoas em situação de rua

Um ano após o lançamento de uma pesquisa do IPEDF, criada com o objetivo de subsidiar propostas do Legislativo e ações do Executivo para as pessoas em situação de rua, ainda há população sem qualquer proteção do Estado

Carlos Silva*
Arthur de Souza
postado em 29/07/2023 06:00
 Em busca de algum auxílio governamental, pessoas em situação de rua montam barracas em frente ao Centro POP, na 902 Sul -  (crédito: Kayo Magalhães/CB/D.A Press)
Em busca de algum auxílio governamental, pessoas em situação de rua montam barracas em frente ao Centro POP, na 902 Sul - (crédito: Kayo Magalhães/CB/D.A Press)

Em junho de 2022, o Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF) lançou uma pesquisa na qual realizou a contagem das pessoas em vulnerabilidade nas ruas, em serviços de acolhimento institucional e em comunidades terapêuticas de todas as regiões administrativas da capital do país. O objetivo era subsidiar proposições legislativas, intervenções e políticas públicas do Executivo para as necessidades da população em situação de rua. O resultado do levantamento mostrou que o DF tem 2.938 pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica.

Passado pouco mais de um ano da pesquisa, o Correio ouviu integrantes dessa população para saber se, de fato, algo mudou. Paulo**, 29 anos, veio da Bahia em busca de uma vida melhor. "Nunca tive uma vida boa. Vim para cá no ano passado, com a esperança de mudar de vida. Me disseram que aqui iria ser melhor e acabou que, quando cheguei, vi que não era nada disso", lamentou. "Tinha sonhos, objetivos e propósitos, mas tudo foi destruído quando cheguei em Brasília. Lá (na Bahia), pelo menos, tinha minha casa e minha família", complementou.

Ele contou à reportagem que, desde quando chegou na capital do país, procurou os órgãos do GDF para tentar um auxílio, mas não teve sucesso. "Nunca tive uma resposta para minhas solicitações. Por isso que, atualmente, estou em uma situação pior que eu me encontrava na minha cidade natal", descreveu. "Acho que eles poderiam olhar mais por quem está na rua, passando por tantas dificuldades. Estamos expostos ao frio e ao perigo. Nem todos que estão nas ruas são marginais. Cada um tem uma história diferente", reclamou.

"Durante este ano que estou aqui, só foi derrota. Ontem passei fome. Cheguei a ir em um restaurante pedir comida, mas o cara puxou uma arma para mim", denunciou. "Só consegui colocar algo no meu estômago hoje. Foram quase 36h com fome", calculou. Paulo disse que já foi casado e tem 11 filhos. Arrependido de vir para o DF, ele revelou que até para tentar voltar à terra natal, não teve auxílio governamental. "Pedi uma passagem para ir embora e eles nunca me deram. Não é fácil. Se pudesse voltar no tempo, nunca teria vindo para cá", desabafou.

O piauiense João**, 38, está em situação de vulnerabilidade desde 2014. Com experiência de servente, auxiliar de serviços gerais e de cozinha, ele contou que, no começo, quando veio para o DF, estava conseguindo se manter, mas isso não durou muito tempo. "De 2014 para cá, enfrentei altos e baixos. Então, a crise econômica bateu na minha porta em 2018. As dívidas foram se acumulando e chegou um momento que não dava mais conta. Estou assim até hoje", detalhou.

Ele não se sente acolhido pelo governo local. "Não percebi mudança (desde o lançamento da pesquisa). O que a pessoa em situação rua mais quer, é ter um projeto de vida, como conseguir uma moradia. Enquanto isso, não vejo nenhuma rapidez, por parte do governo, no processo em que estamos cadastrados para ter uma casa", comentou João. "Não é só dar o dinheiro para a pessoa 'se virar'. O governo precisa se atentar às nossas necessidades, de fato", complementou.

Desilusão

César**, 46, saiu de seu estado natal, Pernambuco, em busca de melhores condições de vida. "Perdi minha mãe quando tinha 12 anos. Depois meu pai arrumou outra esposa e não nos deu muita atenção, resolvi cair no mundo", relembrou. Durante todos esses anos, não encontrou sucesso na busca por oportunidade de emprego fixo, seja em São Paulo, primeiro destino de César, ou em Brasília, onde vive atualmente. 

César conseguiu do governo um auxílio de R$ 600. Para ele, é de grande ajuda, mas não supre as necessidades que um emprego formal sustentaria. Ele vê que ainda faltam políticas públicas voltadas também para moradia. 

Políticas sólidas

Diretor do Instituto Luiz Gama, associação atuante na luta pelos direitos humanos, dos negros e das minorias, Júlio César Silva Santos apontou a ausência de políticas de Estado voltadas às pessoas em situação de rua. "Quando exercitamos os direitos humanos e desejamos construir uma política pública, é fundamental que tenhamos dados. Estes dados existem, os governantes do Distrito Federal sabem qual é a população em situação de rua, onde ficam e se recebem programas sociais", avaliou.

O gestor ressaltou que o Brasil possui ferramentas institucionais avançadas, quando se trata da atenção primária às pessoas em vulnerabilidade, mas ainda falta articulação entre essa área e as demais essenciais à assistência social adequada. "É fundamental para o GDF a desvinculação dos princípios meritocráticos, os quais definem que pessoas em situação de rua estão nestas condições porque desejam, e construam políticas sólidas ao cuidado de quem está marginalizado e minorizado, para que todos possam, efetivamente, gozar de igualdade de condições", enfatizou.

Theresa Raquel Miranda, coordenadora executiva do Instituto No Setor, também comentou sobre o momento atual no DF. Ela alertou que a quantidade de pessoas em situação de rua pode ser muito maior do que a divulgada pelo IPEDF. "Em 2019, o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População de Rua apontava mais de 4 mil pessoas nas ruas. Em 2023, a mesma entidade noticiou que esta população, em Brasília, passava de 7 mil", ressaltou (leia mais em Três perguntas para).

Ações

Instituições do poder público do DF têm ações voltadas às pessoas que estão nas ruas. O Tribunal de Justiça (TJDFT), desde 2021, organizou quatro mutirões de atendimento à população nessa condição, por meio do PopRuaJud. Enquanto isso, o Ministério Público (MPDFT) conta com o projeto Pés na Rua (confira Para saber mais). Juíza e coordenadora da Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua do TJDFT, Luciana Yuki destacou os esforços concentrados pelo tribunal para implementar a política judiciária de atenção aos indivíduos em situação de rua, por meio da articulação da rede interinstitucional.

"Isso para facilitar o acesso à Justiça e o exercício de direitos, especialmente por meio dos mutirões, para a criação de um comitê regional sobre a temática e também da participação ativa no Comitê Nacional PopRuaJud do CNJ. Trata-se de matéria de suma importância que exige a atuação sensível do Poder Judiciário para identificar as necessidades e demandas específicas da população em situação de rua, a fim de provê-la de atendimento adequado e humanizado", ressaltou a magistrada.

Consultório na Rua

Em nota, a Secretaria de Saúde (SES-DF) informou que, atualmente, a definição dos critérios de cálculo do número máximo de equipes de Consultório na Rua (eCR) — que atende a população em situação de vulnerabilidade — é feita pela Portaria MS nº 1.255, de 18 de junho de 2021, a partir de dados dos Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (Sisab) e do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). 

De acordo com a pasta, existem cinco equipes de servidores atuantes nas seguintes regiões de saúde — Central, Sul, Sudoeste, Leste e Oeste — e outras duas encontram-se em processo de credenciamento. As equipes existentes para atender esse público são multiprofissionais e compostas por profissionais de enfermagem, serviço social, psicologia, terapia ocupacional, odontologia e medicina, segundo a secretaria. Elas realizaram, em 2022, segundo dados do Sistema de Informação em Saúde para Atenção Básica (Sisab), 14.325 atendimentos clínicos individuais, 1.043 atendimentos odontológicos e 20.728 procedimentos.

Mesmo assim, a SES-DF afirmou que o estudo do IPEDF foi muito importante na qualificação e elaboração de normas e diretrizes relacionadas ao cuidado com a saúde da população em situação de rua. "Os dados apresentados pelo IPEDF têm subsidiado a área técnica da SES na decisão de onde serão lotadas as novas equipes de Consultório na Rua, priorizando assim as regiões de Saúde com maior necessidade", ressaltou a pasta.

A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) respondeu que, no período da divulgação da pesquisa, o órgão estava em fase de implantação de um modelo "inovador" de acolhimento institucional, com ampliação de 600 novas vagas para pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade em modelos de casas de passagem. "Essas estruturas rompem com o modelo institucionalizado e vão para um mais cidadão, em casas instaladas em perímetros urbanos", destacou a nota enviada pela pasta.

A Sedes também comentou sobre a implantação de repúblicas, pelo qual o acolhido é parte fundamental na gestão da casa. "O Estado fornece a estrutura básica, mas quem gere o dia a dia das unidades são os moradores, com a autonomia e a assistência necessárias", detalhou o texto. A Sedes lembrou da pandemia causada pela covid-19.

"Durante a propagação da doença, o GDF agiu rapidamente e, além de implantar duas unidades temporárias, onde cerca de 4 mil pessoas foram acolhidas, implantou ações que perduram até hoje. Entre elas, a gratuidade no almoço para pessoas em situação de rua nos 14 restaurantes comunitários do DF — foram mais de 320 mil refeições servidas", enumerou a Sedes. A pasta ressaltou que, de maneira geral, "a divulgação da pesquisa ainda é recente para resultados ainda mais profundos do que esses já alcançados, que virão como reflexo das ações implantadas de agora em diante".

STF

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou que o governo federal apresente, no prazo de 120 dias, dados quantificando a população do país que vive em situação de rua. O magistrado também fixou obrigações para estados e municípios, como a garantia de vagas em abrigos e políticas de saúde, segurança e educação. Moraes determinou ainda uma série de ações, como a criação de programas de prevenção a suicídios entre quem vive na rua, inclusão destes em programas sociais e na Política Nacional de Habitação e inserção dos dados sobre a quantidade de pessoas vivendo na rua no Censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Três perguntas para

Theresa Raquel Miranda, coordenadora executiva do Instituto No Setor

O DF tem 2.938 pessoas em situação de rua, de acordo com o IPEDF. O que isso mostra sobre a situação da capital do país?

O número apontado pelo IPEDF não nos diz muita coisa. Primeiro, porque a expectativa é de que o número de pessoas nessa situação tenha crescido nos últimos anos e, já em 2019, o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População de Rua apontava mais de 4 mil pessoas nas ruas. Em 2023, o mesmo Observatório noticiou que esta população, em Brasília, passava de 7 mil. A pesquisa é feita com base no cadastro único do Governo Federal, ao invés de ser uma pesquisa baseada em amostra. Baseado neste número, podemos pensar que a pandemia foi um catalisador do aumento dessa população. Mas o que é mais importante, é a análise dos demais dados produzidos sobre essa população que se mantém majoritariamente negra, masculina e de baixa escolaridade. Isso aponta para o passado escravocrata do país e para a atual dificuldade de superar ainda o racismo estrutural e para questões relacionadas ao gênero.

As políticas públicas atuais para esse público são eficazes, eficientes e efetivas?

Tanto o SUS quanto o SUAS (Sistema Único da Assistência Social) são políticas públicas muito bem elaboradas, porém com muitas dificuldades de serem colocadas em prática. Com relação à população em situação de rua, os serviços destinados a ela ainda são muito precarizados e enfrentam barreiras simbólicas e sociais, incluindo os preconceitos praticados por trabalhadores da área e burocracias que impedem o atendimento a pessoas sem identificação e com baixa escolarização. No DF, as políticas de assistência social e de saúde, principalmente a de saúde mental, ainda se encontram muito defasadas. Há pouco tempo, foi autorizada a reforma dos centropops, mas os espaços ainda não parecem atender às especificidades dessa população, que precisa, além de acesso a benefícios, de práticas de convivência saudável e respeitosa. O serviço de saúde mental do DF tem a pior cobertura do país, e por vezes é substituído por comunidades terapêuticas que ainda tem enfoque religioso.

O que pode melhorar em relação ao acolhimento, por parte do governo, das pessoas em situação de rua?

O aumento do número de servidores, atendendo e qualificando o trabalho que é extremamente complexo. Investimento em políticas territoriais e não privativas de liberdade em saúde mental. Construção de espaços de convivência com profissionais capacitados. Compreensão social das desigualdades sociais que embasam diferentes formas de existir e de viver, e a construção de valores mais comunitários e menos individualistas.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

**Nome fictício para preservar a identidade do entrevistado

 


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