Violência contra a mulher

O flagelo do feminicídio: duas mulheres foram mortas em 48 horas no DF

Com mais duas mulheres mortas, somam-se 18 vítimas de feminicídio em seis meses neste ano. Em São Sebastião, Valdice Santana foi assassinada, nesta segunda-feira (26/6), e o principal suspeito é o namorado, Bruno Gomes

Naum Giló
postado em 27/06/2023 03:55 / atualizado em 27/06/2023 06:28
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

Na primeira metade de 2023, o Distrito Federal tem mais registros de feminicídios do que todo o ano passado. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF), 18 mulheres já perderam a vida violentamente, em razão do gênero, de janeiro até esta segunda-feira (26/6) — um a mais que o registrado em todo o ano de 2022, segundo o Painel de Feminicídios da pasta.

Os últimos dois casos ocorreram em um espaço de apenas dois dias. No sábado (24/6), Emily Talita da Silva, 20 anos, foi assassinada pelo ex-namorado, que a esfaqueou pelas costas e fugiu da cena do crime, no Sol Nascente, por volta das 6h. Menos de 24 horas depois, em São Sebastião, outra mulher foi morta pelo companheiro.

A vendedora autônoma Valdice Santana, 47, morava com o namorado, o pedreiro Bruno Gomes de Oliveira, 27, em uma casa na Quadra 02 do bairro São Bartolomeu. O suspeito contou aos policiais que estava bebendo com a namorada desde as 18h de domingo (25/6), e que, às 22h, tinha ido dormir com ela. Nessa segunda-feira (26/6), por volta das 5h, de acordo com o relato de Bruno aos policiais, ele acordou e se surpreendeu ao perceber que a companheira estava gelada.

Bruno conta que, então, se dirigiu para o quartel do Corpo de Bombeiros (CBMDF), localizado próximo à residência, para pedir ajuda. Os socorristas foram ao local e constataram que Valdice estava morta, mas não identificaram sinais de violência no corpo da vendedora. No entanto, ao registrar a ocorrência, a delegacia acionou a perícia, que achou indícios de asfixia por estrangulamento, suspeita confirmada pelo médico legista. O corpo da vítima foi removido ao Instituto de Medicina Legal (IML) e o laudo técnico acusou sinais claros de morte violenta por esganadura, além de sangue nas cavidades naturais e laceração do fígado.

De acordo com o delegado-chefe da 30ª Delegacia de Polícia, Érico Vinicius, Bruno foi preso em flagrante por feminicídio, apesar de alegar aos policiais não lembrar de nada. "Familiares de Valdice relataram que as brigas entre o casal eram constantes e que Bruno tem problemas relacionados ao consumo de drogas e bebidas alcoólicas", afirma o delegado. A reportagem tentou contato com familiares e vizinhos do casal, mas não obteve respostas. 

O suspeito foi recolhido à carceragem da PCDF e a 30ª DP instaurou o inquérito policial. Bruno tem outras passagens pela polícia, por porte de arma branca, embriaguez ao volante, furto e uso de drogas. Há, também, um registro de denúncia pela Lei Maria da Penha contra ele, feito por uma outra namorada, em 2021. Se for condenado pelo crime, o detido pode pegar de 12 a 30 anos de prisão.

Alerta

A morte de Valdice reacende o sinal de alerta, já acionado no início de 2023, quando, logo na virada do ano, Fernanda Letícia da Silva, 27, foi morta pelo namorado, Maxwel Lucas Rômulo Pereira de Oliveira, 32, na QNP 17 de Ceilândia. Um dia depois, Mirian Nunes, 26, foi brutalmente assassinada pelo marido, André Muniz, 52, em casa, na QNM 21, na mesma região administrativa. Já em março, em uma única quinta-feira, Letícia Barbosa Mariano, 25, e Rayane Ferreira de Jesus, 18, tiveram a vida arrancadas covardemente, em momentos e locais diferentes, pelos respectivos namorados. E agora, em junho, foram quatro ocorrências de feminicídio na capital do país.

No último 20 de junho, Celi Costa do Amaral, 41, matou a ex-mulher, Itana do Amparo dos Santos, 36, a facadas, na frente dos três filhos dela, em Vicente Pires. No dia 2, a pedagoga Adrielly Thauana, 29, também foi assassinada, com golpes de faca, pelo companheiro, Josmar Junio, em Santa Maria. Na sequência, veio Emily Talita, que comemorava aniversário, no sábado (24/6), quando foi assassinada pelo ex, Jonas, que segue foragido.

No sábado, Emily, 20, foi morta pelo ex com uma facada nas costas
No sábado, Emily, 20, foi morta pelo ex com uma facada nas costas (foto: Arquivo pessoal)

Não há confirmação para o caso de Valdice e Bruno, mas no caso de Emily, assim como boa parte das vítimas, havia medida protetiva contra o autor do crime, que estava proibido pela Justiça de se aproximar e se comunicar com ela. Além disso, o homem tinha passagem pela polícia por roubo e, de acordo com relatos de familiares da vítima, era bastante agressivo e já tinha ameaçado, não só ela, como também outras pessoas próximas. Há pouco mais de três meses, Jonas teria tentado esfaquear a ex, mas o golpe acabou atingindo um amigo dele. Mesmo com os apelos da família, ela continuava se encontrando às escondidas com o agressor. Em maio, Emily chegou a registrar um boletim de ocorrência contra Jonas na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher II (Deam II). Na denúncia, ela contou que ele a agrediu com tapas, além de puxões de cabelo e ainda ameaçou atropelá-la.

O que caracteriza o feminicídio, de acordo com a Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, é a condição da mulher em relação ao seu algoz. O crime pode ser caracterizado pelo sentimento de posse ou ainda pelo simples fato de ocorrer em decorrência do gênero.

Denuncie

O relatório Violência contra Meninas e Mulheres, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que, no primeiro semestre do ano passado, no Brasil, em média, quatro mulheres foram assassinadas por dia, totalizando 699 vítimas entre janeiro e junho. O Distrito Federal está entre as 13 unidades federativas com as mais altas taxas desse tipo de crime.

A Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF) explica que os casos oficiais de feminicídios são definidos por uma Câmara Técnica, que avalia uma a uma as ocorrências. O órgão explica que a qualificação pode mudar, de acordo com andamento das investigações ou, ainda, segundo o entendimento da Justiça, uma vez que o feminicídio é um qualificador para o crime de homicídio. 

Uma das principais ferramentas contra a violência é a denúncia, que pode ser feita ser feita em qualquer delegacia de polícia, não apenas nas duas unidades de Delegacia Especializada no Atendimento a Mulheres no Distrito Federal (Deam), localizadas na Asa Sul e em Ceilândia. Também é possível fazer a denúncia na delegacia virtual, pelo site da Polícia Civil (PCDF). Em casos de emergência, mesmo que a vítima silencie ou se oponha a fazer a denúncia, a polícia deve ser acionada pelo 190. Em casos não emergenciais, ou seja, quando não está ocorrendo uma briga, mas a mulher se encontra em situação de risco em um relacionamento abusivo, a denúncia pode ser feita pelo 180, canal que oferece orientações à vítima e a quem quer ajudá-la.  

A SSP-DF disponibiliza às mulheres do Programa Sistema de Segurança Preventiva para Mulheres em Medida Protetiva de Urgência o aplicativo Viva Flor. Após ser acionado, o mesmo mostra em tempo real a localização da mulher em situação de vulnerabilidade e permite às forças de segurança chegarem com mais agilidade ao local do socorro.

Colaboraram Eduardo Fernandes, Mila Ferreira e Pedro Marra 

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  • Preso em flagrante, Bruno Gomes de Oliveira, 27, é acusado de matar a namorada
    Preso em flagrante, Bruno Gomes de Oliveira, 27, é acusado de matar a namorada Foto: Reprodução/Redes sociais
  • Valdeci Veiga, 47 anos: brigas constantes com assassino
    Valdeci Veiga, 47 anos: brigas constantes com assassino Foto: Reprodução/Redes sociais
  • Jonas Costa Patáxia, 29, matou a ex-namorada e está foragido
    Jonas Costa Patáxia, 29, matou a ex-namorada e está foragido Foto: Arquivo pessoal

Sepultamentos

O corpo de Valdice foi sepultado na tarde de ontem, na Cidade Ocidental (GO). Já o sepultamento de Emily Talita da Silva, morta brutalmente pelo ex-companheiro com uma facada no sábado, será hoje, em Taguatinga. A família da vítima precisou fazer uma "vaquinha" para arrecadar dinheiro e arcar com os custos de velório e sepultamento da jovem. O velório acontecerá a partir das 9h, no Cemitério Campo da Esperança de Taguatinga. O enterro está marcado para às 11h30.

"Denunciar é obrigação de toda a sociedade"

 (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

A frequência de crimes contra a vida de mulheres e a forma como eles ocorrem demonstram a fragilidade na aplicação da lei e a falta de implantação de políticas públicas eficazes, por parte do poder público. Essa é a avaliação de Cristina Tubino, presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica e Familiar da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), convidada de ontem do Podcast do Correio. 

Em conversa com as jornalistas Adriana Bernardes e Aline Brito, a advogada destacou a necessidade de medidas protetivas mais rígidas a serem aplicadas pelo Poder Judiciário, contra os agressores das mulheres, como uso de tornozeleira eletrônica e a falta de investimento na prevenção a violência tem levado mulheres a morte de forma cruel e com uma proximidade espantosa entre um crime e outro. Para Cristina, um dos motivos para o elevado número de assassinatos contra mulheres pode estar na ausência de medidas drásticas, como o monitoramento por tornozeleira eletrônica, a partir do momento em que a mulher procura uma delegacia para registar uma denúncia. O uso da tornozeleira seria um meio de coibir o agressor, para que ele não chegasse a matar essa mulher.

"Esse homem se sentiria constrangido com o equipamento, pois estaria visível, emitiria um som, caso ele fizesse um percurso maior que o estipulado. Mas, o problema começa na delegacia, em que, ao emitir o boletim de ocorrência, solicita a medida protetiva que se resume apenas na distância de 300m do agressor, e isso não o inibe de cometer o crime. São muitas as medidas que a vítima tem direito, mas elas não sabem. Falta informação sobre o rol de medidas elencadas na lei", ressalta Tubino.

De acordo com Cristina, a forma como o homem vê a mulher precisa ser transformada, deixar de ser uma questão cultural e histórica, em que a mulher sempre teve seus direitos privados, seja em várias profissões, seja em quaisquer circunstâncias, como, por exemplo, quando ela decide colocar fim em um relacionamento. 

"A luta para que as mulheres sejam vistas com direitos iguais é permanente. A mulher está sempre num lugar de inferioridade. Não temos uma política preventiva de conscientização para combater a violência doméstica e o crime. Dados mostram que o ano de 2022 teve o menor investimento em políticas públicas de defesa voltadas à mulher e à igualdade de gênero, e o reflexo pode ser visto com esse aumento na morte de mulheres", destaca.

Cristina ressalta que, tanto delegacias como o Poder Judiciário devem acolher a mulher vítima de violência, e não colocar a denúncia dela em dúvida. "É preciso tirar das costas da mulher a obrigação de denunciar crimes de violência doméstica, porque muitas vezes a mulher não sabe que está sendo vítima, dependendo do tipo da violência aplicada pelo agressor. Denunciar é uma obrigação de toda a sociedade", explica a advogada.

Para a presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica e Familiar da OAB-DF, a conscientização começa na escola, com educação. "O papel do Estado é aprimorar a rede de acolhimento da mulher vítima de violência, como inclusão automática em programas sociais e atendimento psicológico. A prevenção, de forma ampla e efetiva, salva a vida de uma mulher", conclui Cristina Tubino. 

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