Além da mensagem escrita, uma carta passa também esperança. É assim que a professora e pesquisadora em comunicação Dione Oliveira Moura define os manuscritos do projeto Cartas para o amanhã — vigilância comemorativa, Lélia Gonzalez e os próximos 60 anos da Universidade de Brasília (UnB). Os textos estão disponíveis a partir de hoje na Faculdade de Comunicação e serão reunidos em um livro para futuros leitores e universitários.
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As cartas foram escritas em evento aberto ao público, em 6 de maio — data em que são comemorados os 20 anos da lei de cotas — no auditório da Faculdade de Comunicação e endereçadas às futuras estudantes negras, brasileiras e africanas, indígenas e quilombolas que irão ingressar na universidade nos anos que ainda virão.
O projeto das cartas trabalha com a possibilidade de um futuro mais inclusivo, além de criar uma rede de apoio e acolhimento para estudantes negras e indígenas que estarão ocupando a universidade daqui a 60 anos. "É uma carta de esperança. Começamos quando a UnB tinha 60 anos e assim vai até os 120", comenta a educadora. "Quando você escreve uma carta, ela não tem respostas rápidas. Dentro dela, tem muito a questão do tempo e de esperança", destaca Dione.
No blog Cartas para o Amanhã, conta com manuscritos do ano passado e as estudantes que estão entrando na UnB por meio das cotas estão recebendo essas mensagens escritas por outros graduandos e graduados. Para a professora e orientadora do evento, a importância do projeto é imensa devido aos 20 anos da política afirmativa na UnB e dos 61 anos da universidade. "Os resultados foram muito positivos. É um momento também de tirar um pouco o peso das costas. Vamos mostrar para esses estudantes do futuro o percurso que já foi feito", pontua.
Segundo a educadora, a ideia das cartas também é dizer às jovens negras e indígenas que virão para a UnB para elas não se esquecerem de quem são. "Elas têm uma história que vai além da vida delas, inclusive as cotas. Mesmo que a gente não precise mais dessa política mais adiante, talvez daqui 60 anos, mas o contexto maior fica, como é o caso da colonização indígena e da escravidão negra que estão marcadas no passado", ressalta Dione.
Pioneira
A UnB foi a primeira universidade do país a adotar o sistema de cotas para o ingresso de estudantes negros e indígenas."Objetivamente, nós temos boas notícias para esses estudantes. A UnB conseguiu sim incluir jovens negros e indígenas e vários deles já graduaram e estão atuando no mercado de trabalho com brilhantismo. Para o amanhã, é dizer que ainda pode ter mais e podemos fazer mais. O que já está bom para o amanhã pode ser melhor", enfatiza a professora.
Inspiração
A pensadora e historiadora Lélia Gonzalez é a inspiração para a criação do projeto. A mineira, nascida em Belo Horizonte na década de 30, foi uma intelectual, autora, política, professora, filósofa e antropóloga brasileira, atuante nos estudos sobre cultura negra, luta contra o racismo estrutural e feminismo. Lélia realizou uma pesquisa sobre as jornalistas negras brasileiras que são militantes das causas negras. "Quando eu pergunto quem é a referência de feminismo negro, invariavelmente a primeira a ser mencionada é Lélia e fui estudar para entender o que ela inspira tanto", pontua Dione.
A educadora universitária destaca que Lélia colocou a mulher negra como uma pauta no movimento. "No feminismo negro a carta é um documento muito comum, diferente do feminismo não negro no qual os manifestos são mais usados. O feminismo negro trabalha mais com carta, porque as tarefas das intelectuais negras demoram mais para serem concluídas. Algo que vai caminhar no tempo para alguém lá na frente concluir", destaca.
É em Lélia que a estudante de jornalismo Luana Gonçalves, 27, se espelha. Luana é uma das pioneiras do projeto. Ainda em 2021, ela recebeu o convite da professora Dione e não pensou duas vezes: aceitou e fez um podcast. "Virou meu produto final de conclusão de curso, para falar das cartas, do afeto da mulher, da ancestralidade, afetividade", explica.
A graduanda saiu de São Paulo e fez de Brasília sua nova casa. Se a USP (Universidade de São Paulo) não era uma opção, a UnB a acolheu. "O que me fez vir para cá foram as polícias de permanência, como a bolsa e casa do estudante. Em São Paulo, teria que trabalhar e não morando perto de casa, não conseguiria aproveitar tanto o curso".
A carta de Luana foi dedicada às suas duas irmãs mais novas, de 20 e 15 anos. Escreveu sobre sua trajetória, dificuldades e experiências. "É um incentivo para essas meninas", conclui.
Orgulho
"Hoje eu estou aqui escrevendo, representando aproximadamente 200 indígenas na UnB pelo sistema de cotas. Para que eu esteja aqui, muitos dos meus se foram, lutando por mim. Escrevo aqui, para que no futuro, outras gerações se lembrem do meu passado na UnB". Assim começa a carta de Saôry Txheska, de 22.
Saôry se identifica "uma semente cotista". Ela é filha da primeira mulher indígena a se formar pelo sistema de cotas. "Está dando frutos. Espero que outras, me vendo, queiram vir para cá".
Originária do povo Ful'nio, do interior de Pernambuco, a estudante só conseguiu cursar ciências sociais graças à prova rotatória — uma das modalidades do vestibular, que passa de comunidade em comunidade por todo o Brasil. "Sempre via minha mãe vir para cá. Criei curiosidade e quis viver aquilo", revela.
A carta de Saôry foi dedicada a todos os indígenas que vieram, estão ou virão. A expectativa dela é que uma estudante do futuro leia e que ela não desista, apesar de todos obstáculos no caminho. "Espero que essas políticas de ações afirmativas desabrochem. Saiam da teoria e vá para a prática, que façam os estudantes permanecerem aqui. Vagas têm, há muitas dificuldades na permanência", finaliza.
*Estagiário sob a supervisão
de Márcia Machado
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