Patrimônio

Mais que uma sala de cinema no Gama, Cine Itapuã espera por socorro

Moradores e artista relembram grande momentos do Cine Itapoã, fechado desde 2005. O local era o principal espaço cultural da cidade

Naum Giló
postado em 13/06/2023 06:00 / atualizado em 13/06/2023 15:59
 (crédito: Naum Giló)
(crédito: Naum Giló)

Apesar da negligência de 18 anos do Poder Público, o Cine Itapuã, no Gama, é uma joia da cultura do Distrito Federal. É o segundo cinema mais antigo da capital, ficando atrás do Cine Brasília. Inaugurado em 1963, o espaço serviu para levar cinema, teatro e música para a comunidade gamense. Mais que um equipamento cultural, o cine, localizado na região central, foi por décadas o ponto de encontro e terreno fértil para artistas e agitadores culturais da cidade.

O local teve o apogeu até os anos 1990. Depois, os filmes foram deixando de ser exibidos, dando lugar a espetáculos teatrais e musicais. No entanto, a falta de zelo e conservação do bem público acabaram fazendo com que o local fosse fechado em 2005. Hoje, nem o letreiro está na fachada do edifício. O anúncio feito, ano passado, pelo governo do DF de recuperação do Cine Itapuã reacendeu a esperança de moradores do Gama, que guardam boas recordações do que foi o principal espaço cultural da cidade.

"A minha lembrança mais antiga no Cine Itapuã é quando fui lá para assistir um filme dos Trapalhões, em um passeio da minha escola", recorda Laercio Nicolau. Todas as vivências que teve durante a infância e a juventude no cine serviram de base para se tornar o artista que é hoje. Poeta e ator, Nicolau lamenta a falta que o espaço faz para os moradores da cidade. "Lembro-me de um período em que o vigilante do Itapuã era amigo do meu pai e ele se encarregava de nos informar das programações do cinema", rememora.

"É uma lacuna muito grande. Se temos um cinema na cidade, estimulamos as produções cinematográficas. Hoje, com um celular na mão, um jovem consegue fazer cinema. Imagine se tivesse o Cine Itapuã para exibir as obras dos artistas do Gama. Temos muitos cineastas na cidade, mas não existe um lugar para exibir as obras deles", reclama.

E não era apenas cinema. O Itapuã também foi palco de apresentações musicais. "Cheguei a ir aos shows de Emílio Santiago e Ângela Ro Ro dentro do cine. Na parte de fora, ocorria muitas manifestações culturais", lembra. Outra recordação de Laercio é um painel pintado por um artista da cidade que lhe chamava muito a atenção. "Acho que até hoje está lá", espera.

Com a notícia de que o espaço será recuperado, Laercio acredita que o local volte a ser um polo de encontros e que fomente a cadeia produtiva da cultura, desde o pipoqueiro até os próprios artistas. "Por que tem cinema no Plano Piloto e na periferia não? Para qualquer cidade do mundo, é importante que se tenha um cinema, assim como teatro, biblioteca e outros equipamentos culturais", questiona.

Para o ator, produtor cultural e DJ Fábio Jorge, 36, o Cine Itapuã é mais do que as boas memórias da infância e juventude. O pai dele, Luiz Sérgio, conhecido como Serjão, foi um agitador cultural do Gama, que tinha o cine como principal campo de ação. Fábio ainda guarda recortes de jornais e outros registros da época em que o pai, falecido em 2019, usava o espaço do cinema para manifestações culturais. Ator, dramaturgo, poeta e músico, Serjão foi um dos fundadores do Grupo de Teatro do Gama.

"O Cine Itapuã por muito tempo foi apenas sala de exibição, mas depois se tornou um polo cultural. Não só o cinema mas também a praça onde o cinema fica. Acho que o Cine Itapuã representava para o meu pai, o acolhimento da cidade. A gente não precisava ir ao Plano Piloto para ter acesso a um espaço como o Itapuã", destaca Fábio.

Das memórias da infância, o ator lembra de ir assistir clássicos da Disney, dos pipoqueiros e do saudoso Palhaço Pirulito. "Tinha muita cor, muita vida naquela praça. As crianças realmente tinham o hábito de ir para as estreias. Nunca vou esquecer de uma sessão tarde da noite que fui assistir com minha tia. Só tinha eu e ela na sala", rememora. Fábio também chegou a se apresentar em um espetáculo teatral no espaço na adolescência. "Nessa época, já conseguíamos ver a decadência da estrutura do Itapuã, até o ponto em que fechou".

Mesmo após o fechamento do cine, Fábio conta que a praça resistiu por um tempo como ponto de encontro da cultura do Gama, o que também acabou sendo sufocado nos últimos anos. "Com a reforma da praça, o coreto ficou bem feio, fora da proposta inicial, e caiu no desuso. Tiraram os bancos, onde as pessoas costumavam sentar para tocar violão. Ficou sem vida", lamenta.

O equipamento cultural é parte da história de várias gerações de gamenses. "Nos anos 1980, era o único local de diversão da cidade. E hoje faz falta. Um espaço para cultura é de suma importância para qualquer sociedade. Hoje, o Gama não tem uma sala de cinema sequer", critica o técnico em orçamento Sandro Luiz Barreto Santos, 53.

Foi no Cine Itapuã que Sandro viu os filmes do cineasta gamense Afonso Brazza (1955-2003), autor do clássico Fuga sem destino. Com a expectativa da volta do Cine Itapuã, o morador do Gama teme a violência urbana nas ruas da cidade, mas garante que volta a frequentar o cine. "Foi lá que conheci muitas das amizades que tenho até hoje."

Licitação

Não há previsão para a conclusão das obras de recuperação do Cine Itapuã. A Administração do Gama informou ao Correio que a primeira etapa, que envolve a reparação do telhado, foi concluída. Agora, a espera é pela autorização do Corpo de Bombeiros (CBMDF) para o restante da obra, que ainda será licitada.

Em 2021, o bem patrimonial foi transferido para a Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec), ano em que começaram ações emergenciais para preservação do espaço e os estudos para elaboração e contratação dos projetos, segundo a pasta. Para o novo Cine Itapuã, há a proposta de modificação do tamanho e altura do palco. O projeto prevê ainda a instalação de camarins com banheiro acessível, além de adequações para modernização das instalações elétricas e hidrossanitárias e a manutenção da área de plateia com cerca de 330 lugares.

"O Cine Itapuã é um espaço histórico, abrigou geração de artistas do DF e tem, para nós, uma importância estratégica, por situar-se numa região que é celeiro de cultura. Trata-se de um verdadeiro resgate, pois é vergonhoso o tratamento que recebeu no passado recente, quase reduzido a escombros", declara o secretário de Cultura e Economia Criativa, Bartolomeu Rodrigues.

 

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    O Cine Itapoã faz parte da história da família de Fábio Jorge Foto: Fotos: Naum Giló
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    Totem preserva a memória do polo cultural Foto: Naum Giló
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    Imagem do Arquivo Público do Cine Itapoã: uma história gamense Foto: Arquivo Público do Distrito Federal
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