O Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF) libera recursos da União destinados anualmente ao Governo do DF para serem utilizados exclusivamente nas áreas de saúde, de educação e de segurança pública. Instituído em 2002, o fundo começou a ser repassado à capital da República a partir do ano seguinte, e é destinado ao pagamento de pessoal, custeio e investimento nessas áreas, consideradas as mais sensíveis e carentes do DF.
De acordo com projeções da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Administração (Seplad) do DF, caso o Arcabouço Fiscal seja aprovado no Senado Federal, nos mesmos termos da Câmara dos Deputados, a projeção é que haja uma perda de R$ 87,8 bilhões até 2033. Isso pode afetar drasticamente a prestação de serviços nas áreas que são supridas pelo fundo, principalmente em regiões conhecidas como Cinturão da Pobreza no DF, conforme explica o coordenador de graduação em economia, gestão pública e financeira do Centro Universitário Iesb, Riezo Silva.
"Essas regiões podem ser ainda mais afetadas com a falta de preservação dos recursos do FCDF. Mesmo com o aporte atual, os valores repassados para a segurança pública, saúde e educação não conseguem contribuir totalmente com o desenvolvimento dessas regiões", destaca. "Diminuir os investimentos no FCDF pode afetar ainda mais a população da capital", alerta.
O Correio visitou quatro regiões incluídas nesse cinturão — Sol Nascente/Pôr do Sol, Arapoanga e Santa Luzia — onde a maioria dos moradores relataram dificuldade em encontrar emprego, além da falta de serviços básicos, principalmente de saúde, segurança e educação, gerando um ciclo de privações e limitações nessas comunidades.
Sem esperança
No Sol Nascente, a reportagem encontrou Alice Ericeira, 40 anos, que voltava do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), com dois dos seus seis filhos. Eles foram até o centro de referência em busca de uma cesta básica, mas voltaram para casa com apenas um quilo de farinha e um litro de azeite, recebidos por meio de doação. No Cras, ela foi informada que, para conseguir a cesta, deveria fazer um agendamento por telefone, o que, de acordo com Alice, ela está tentando há dois anos e nunca conseguiu.
De acordo com a moradora do Sol Nascente, outros tipos de ajuda chegam à família por meio da solidariedade de vizinhos ou de algum visitante que passa pela região. "Eles sempre deixam algum alimento, como um pacote de arroz que dá para comer quase uma semana. Para alimentar minha família no almoço e no jantar durante 20 dias, é necessário pelo menos duas cestas básicas", comenta.
Alice Ericeira veio de São Luís e mora no Sol Nascente há sete anos. Além da falta de emprego para que possa ter uma renda e sustentar as crianças, Alice destaca a falta de segurança do lugar onde mora e a dificuldade de matricular todos os filhos nas escolas.
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Escuridão
Não muito distante de Alice, na quadra 701 do Conjunto D do Pôr do Sol, vive Edna da Silva Lopes, 54, junto a cinco pessoas. Com problemas de saúde, ela explica que não consegue mais trabalhar e sobrevive apenas com o dinheiro do benefício que recebe do governo. Além disso, cata latinhas todos os dias nas ruas do bairro para conseguir colocar comida em casa.
Edna também reclama da insegurança do local, que é ermo, deserto, muito escuro durante a noite, ambiente fácil para furtos e roubos. "Vivemos largados, sem nenhum tipo de infraestrutura, de segurança e iluminação. Esse lugar é no meio do nada. Precisamos urgente de socorro, somos pessoas, apesar de vivermos sem nenhum tipo de assistência. O governo precisa olhar para nós, os mais necessitados", clama.
Dificuldades
A 30km de distância do Sol Nascente, no bairro Santa Luzia, na Cidade Estrutural, vive o carroceiro Everton Moreira, 60, em um barraco construído com pedaços de madeira de vários tipos, madeirite, papelão, lona e outros materiais recicláveis. Everton cobra mais segurança na região e reclama das dificuldades quando precisa ir ao hospital. Ele divide o espaço com os filhos depois que a mulher o abandonou, em 2019. Segundo o carroceiro, ela foi embora levando apenas a filha menor do casal e deixou os outros quatro filhos para trás. Atualmente os filhos de 13, 12 e 9 anos, todos sem estudar, foram recolhidos pelo Conselho Tutelar da Cidade Estrutural, após denúncia de que as crianças passavam o dia vagando pelas ruas.
Eles foram levados para um abrigo em Taguatinga. Somente a mais velha Maria Paula*, 14, conseguiu voltar para o bairro depois de fugir do abrigo. A menina mora com o companheiro na frente da casa do pai e, segundo ela, todos os dias é a responsável pela limpeza do barraco e pela comida da família.
Com olhar distante e um sorriso tímido, Everton conta — enquanto dá água à seu cavalo — que apesar de todas as dificuldades enfrentadas, devido à pobreza, sua maior tristeza é voltar para o barraco e não encontrar seus meninos correndo pelo quintal abarrotado de entulho ou vê-los na rua em frente ao lote. "Quero ter meus pequenos junto comigo, aqui é o lar deles", desabafa.
Desigualdade
A 45km do Palácio do Planalto, em Arapoanga, Planaltina, mora Diene Pereira da Silva, 37. Desempregada e mãe de sete filhos, com idades entre 23 anos e 7 meses de vida, ela abre as portas da casa humilde, localizada em frente uma área de cerrado cheia de lixo, para mostrar a rotina da família, que sobrevive com R$ 600 do Programa Auxílio Brasil e mais R$ 100 de auxílio gás que recebe do governo local.
A filha mais nova de Diene, uma menina com 7 meses de idade, nasceu prematura e, depois de passar quatro meses internada em hospitais públicos, só toma um tipo de leite, o qual custa R$ 50 cada lata, pago com muita dificuldade. "Não é fácil viver em um local assim sem infraestrutura, porém, o mais difícil é a falta de trabalho e de dignidade. É ruim enxergar o tamanho da desigualdade em que vivemos na capital do país. Se em um ponto da cidade existem os ricos, com muito dinheiro e mordomia, do outro lado existe a minha família e muitas outras, que não tem o básico para sobreviver", destaca.
Muita demanda, pouca estrutura
Se de um lado as demandas por serviços essenciais aumentam nas áreas mais carentes do Distrito Federal, do outro o governo da capital da República destaca a importância do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF) para ajudar a mitigar esses problemas sociais. Os responsáveis pelas pastas que recebem o aporte do Fundo Constitucional afirmam que o recurso é importante para levar serviços básicos até as regiões mais vulneráveis e que o corte pode afetar tais investimentos.
O secretário de Segurança Pública do DF, Sandro Avelar, destacou ao Correio a relevância do repasse — da forma como é calculado atualmente — para manter a prestação dos serviços. "A redução do repasse anual do Fundo Constitucional pode acarretar uma série de prejuízos, pois é a única fonte de recurso da Segurança Pública do DF. Esse limite em nossa capacidade de investir e em contratar novos profissionais pode impactar diretamente na segurança e qualidade de vida da população, incluindo regiões mais vulneráveis do DF", comentou.
A Secretária de Educação (Seedf), Hélvia Paranaguá, disse que a pasta tem priorizado os investimentos nas áreas em constante crescimento no Distrito Federal, como o Sol Nascente e o Arapoanga, por exemplo. "Tudo isso para levar uma educação de qualidade para perto de onde moram os estudantes. Para isso, são necessários investimentos na construção de novas escolas e um possível congelamento do FCDF vai impactar fortemente nesse sentido", alertou. "Sabemos que, sem o Fundo Constitucional, teremos que fazer cortes para pagar a folha salarial e um deles seria justamente nos investimentos, que permitem a melhoria da infraestrutura da rede de ensino", ressaltou Hélvia.
A secretária de Saúde do DF, Lucilene Florêncio, reforçou que o Fundo Constitucional é vital para a saúde do DF. "De toda nossa folha de pagamento, 85% vem deste repasse. Somos a capital de todos os brasileiros e temos despesas que são próprias por ter mais essa condição", afirmou. "Não havendo esse aporte do Fundo Constitucional, regiões administrativas com alta vulnerabilidade ficarão com suas infraestruturas comprometidas, com dificuldade na entregas de hospitais, UBSs, UPAs e CAPS", ressaltou a gestora.
Abismo social
Mesmo com os aparelhos públicos disponíveis, o geógrafo e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) Aldo Paviani acredita que o Distrito Federal tem um abismo social a ser observado. "Em sua evolução socioespacial, a capital do país se tornou uma cidade extremamente desigual, com bolsões de pobreza", avalia o especialista (leia mais em Artigo).
Isso reforça a necessidade da manutenção do Fundo Constitucional, de acordo com o coordenador de graduação em economia, gestão pública e financeira do Centro Universitário Iesb, Riezo Silva. O especialista detalha como o congelamento pode afetar cada uma das áreas.
"Falando da segurança, especificamente, um possível corte do Fundo Constitucional pode afetar o setor em todo o DF. Quando não se combate a criminalidade nas pontas, reflete na área central", observa. "Em termos de saúde, a mesma coisa. Se não tiver médicos suficientes nesses locais, a população não vai ser atendida devidamente, além de sobrecarregar as unidades de outras regiões", pontua. "Na educação, como uma parte do fundo paga os professores, com menos recursos, a dificuldade para manter a folha salarial e realizar contratações aumenta, fazendo com que novas matrículas fiquem inviáveis", alerta Silva.
Equipamentos
Para atender os 93,2 mil moradores do Sol Nascente/Pôr do Sol, a Secretaria de Saúde (SES-DF) disse que tem duas unidades básicas de saúdes, uma unidade de pronto atendimento (UPA) e o Hospital da Cidade do Sol. Muitos também recorrem ao Hospital Regional de Ceilândia (HRC). Na parte educacional, a Secretaria de Educação ressaltou que Sol Nascente/Pôr do Sol é abrangida pela Coordenação Regional de Ensino (CRE) Ceilândia, com apenas seis unidades escolares, que atendem 4.172 alunos.
A Polícia Civil (PCDF) disse que duas delegacias são responsáveis por atender os moradores da região de Sol Nascente/Pôr do Sol, a 19ª DP e 23ª DP. Em relação à Polícia Militar (PMDF), a corporação destacou que o 10º Batalhão é responsável pelo policiamento no Sol Nascente, enquanto o 8º Batalhão patrulha o Pôr do Sol.
Sobre Arapoanga e Santa Luzia, a Seedf informou que a comunidade localizada em Planaltina é atendida por cinco unidades escolares, que atendem 2.741 estudantes. Enquanto isso, Santa Luzia tem à disposição a Escola Classe 03 da Estrutural, a qual tem 479 alunos matriculados.
Na área da segurança pública, a delegacia que atende os moradores de Arapoanga é a 6ª DP (Paranoá), enquanto a unidade responsável pela comunidade Santa Luzia é a 8ª DP (Estrutural). A PM tem um batalhão para cada comunidade: o 14º Batalhão atende Arapoanga e o 15º atua em Santa Luzia. Por questões estratégicas, a corporação não divulgou o efetivo empregado em cada uma das regiões.
*Nome fictício para não revelar a identidade do personagem.
Sobre as regiões
Arapoanga (47.829 habitantes)
São 12.815 unidades ocupadas, com uma média de 3,73 moradores por domicílio. Já a renda domiciliar estimada foi de R$ 2.270,00, que resulta em um valor médio por pessoa de R$ 888,60.
Santa Luzia (10.273 habitantes)
São 2.544 unidades ocupadas, com uma média de 4,04 moradores por domicílio. Já a renda domiciliar estimada foi de R$ 1.747,40, que resulta em um valor médio por pessoa de R$ 572,60.
Sol Nascente/Pôr do Sol (93.217 habitantes)
São 29.114 unidades ocupadas, com uma média de 3,2 moradores por domicílio. Já a renda domiciliar estimada foi de R$ 2.188,30, que resulta em um valor médio por pessoa de R$ 915,50.
Fonte: PDAD/IPEDF
Artigo
Desigualdades socioespaciais
Aldo Paviani, geógrafo e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Em fins da década de 1950, o presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira (JK) desejou implementar o que chamou de “Meta síntese”, isto é, a transferência da capital da República brasileira para o interior. Essa era uma aspiração que remonta a Tiradentes e que JK expôs em seu livro Porque Construí Brasília, com 370 páginas (Editora Bloch, 1975). A obra indica o desejo de “integração nacional”. Junto a isso, pensou no “desenvolvimento do país” utilizando rodovias federais (as BRs), uma trama unindo o território nacional. Olhando-se retrospectivamente, esse objetivo ficou conhecido como "rodoviarismo", uma vez que não havia recursos para a construção de ferrovias tal como em outros países com grandes territórios.
A transferência da capital foi exitosa, mas considera-se que o Brasil possui desigualdades na distribuição da renda, com diversidade de salários e de riquezas entre as cinco grandes regiões — o Nordeste com bolsões de pobreza vis-à-vis com ao Sul, possuidor de maior desenvolvimento econômico e social. A transferência da capital para a região do Cerrado foi um sucesso no povoamento do interior.
Todavia, Brasília em sua evolução socioespacial se tornou uma cidade extremamente desigual, com bolsões de pobreza. A capital possui a maior favela brasileira, tal como é considerado o Sol Nascente-Pôr do Sol, com cerca de 90 mil habitantes. A Codeplan na PDAD de 2021 mostra que a diferença de renda entre as regiões mais pobres e mais ricas do DF é de R$ 12.108,89, enquanto que a renda média do país é de R$ 6.329,14. Ainda segundo dados do IBGE, a comunidade do Pôr do sol-Sol Nascente possui renda média de R$ 915,00, enquanto o Lago Sul revela a renda mais elevada por pessoa chegando a R$ 10.979,00.
Os dados acima mostram uma evolução social e espacial preocupante para o futuro e esperam-se medidas para atenuar essas desigualdades na capital de um país com tantas riquezas e potencialidades.
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