Desde a implementação no Brasil, em 2015, para atendimento a tratados internacionais sobre direitos humanos, as audiências de custódia provocam debates. O principal objetivo, segundo os defensores, é assegurar o direito ao preso, auxiliar no problema da superlotação dos presídios e reduzir gastos nos sistemas Judiciário e prisional. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um dos incentivadores. Porém, há fortes críticas à iniciativa.
Muitos especialistas, juristas e policiais argumentam que as audiências fazem a polícia "enxugar gelo" e ter um retrabalho na segurança com a volta dos criminosos ao mundo de crimes. Dados obtidos com exclusividade pelo Correio por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) revelam que, no DF, entre 2019 a janeiro deste ano, a Justiça soltou 34.168 pessoas e decretou a prisão preventiva de 14.985 nas audiências.
Os dados foram formulados pelo Núcleo Permanente de Estatística da Primeira Instância do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios. A lista traz mais de 70 crimes, entre aqueles de menor potencial ofensivo (em que a pena máxima é de até dois anos) e os dolosos, em que o autor tem a intenção de praticar o ato. A reportagem selecionou os mais relevantes (veja Audiência de custódia). Entre 2019 até janeiro deste ano, os crimes de ameaça, trânsito, furto, injúria, lesão corporal, receptação, roubo e tráfico de drogas foram os que mais levaram presos a audiências de custódia no DF: 34.955 pessoas.
Desses, 23.471 foram liberados e 11.484 ficaram presos. Uma diferença de 104%. Chama a atenção aqueles detidos por tráfico de drogas. Em quatro anos e um mês, a Justiça do DF prendeu 4.433 traficantes. Enquanto outros 5.664 foram soltos no mesmo período. Só no primeiro mês de 2023, 49 pessoas foram presas por tráfico e 106 liberadas. Em relação aos crimes de homicídio e feminicídio, a Justiça decretou a preventiva de 970 pessoas e liberou 334.
As audiências de custódia duram, em média, 20 minutos e são feitas, geralmente, 24 horas após o flagrante. Até 2015, antes de ser implementada, os presos eram levados diretamente para as delegacias, onde eram feitos os boletins de ocorrência e, depois, encaminhados aos Centros de Detenção Provisória (CPDs). Em entrevista concedida ao Correio, o juiz Guilherme Marra, do TJDFT, explica as finalidades dessas audiências. A primeira, segundo ele, é verificar se o preso sofreu tortura ou maus-tratos desde o momento da prisão até a apresentação em audiência. A segunda é determinada ao fim da sessão, em que o juiz decidirá se ele responderá ao processo solto (que é a regra, ante a presunção de não culpabilidade que todo cidadão tem por expressa disposição constitucional) ou preso (quando preenchidos os requisitos legais).
Para o magistrado, as audiências de custódia possibilitam uma maior individualização na tomada de decisões a respeito da necessidade de prisões preventivas e permite o acolhimento das pessoas em situação de vulnerabilidade, como dependentes químicos ou moradores de rua. "Foi um avanço na administração da justiça criminal, influenciado pela Convenção Americana de Direitos Humanos", avalia.
O juiz cita o furto como exemplo de crime cometido por pessoas em situação de vulnerabilidade. "É muito comum encontrarmos usuários de crack que praticam furtos de forma recorrente. Quando nos deparamos com esse tipo de situação, fazemos o devido encaminhamento para o setor psicossocial, que acolhe a pessoa presa e a direciona para tratamentos ambulatoriais que podem surtir efeitos, diminuindo a taxa de criminalidade", pondera. O crime de furto é o que mais resulta na liberação de presos. De 2019 até janeiro de 2023, 5.405 pessoas foram soltas. Apenas 1.555 permaneceram detidas.
Questionado sobre os casos de homicídios que ganham a liberdade provisória em audiência, o juiz avalia que é preciso se atentar a cada caso e fala sobre a presunção da inocência. "Se o sujeito é apresentado em audiência de custódia suspeito de ter cometido um homicídio simples, não necessariamente ele terá que responder ao processo preso. É preciso conhecer cada caso e verificar se a liberdade dele, naquele momento da custódia, representa algum risco à sociedade, como, por exemplo, de reiteração criminosa, ameaça de testemunhas etc. Se não houver nenhum risco assim, a regra deve prevalecer: responde solto e, depois, se for condenado, cumprirá sua pena", adverte.
Além de verificar se há alguma irregularidade na prisão, o juiz analisa se o preso é réu primário, tem bons antecedentes, endereço ou emprego fixo. Tudo isso pode ser decisivo para a soltura. Caso o magistrado chegue à conclusão que o detido não oferecerá riscos à população, determina o relaxamento da prisão e impõe o pagamento de fiança ou as medidas cautelares, como o comparecimento em juízo e uso da tornozeleira eletrônica.
Críticas
As audiências enfrentam críticas. Em casos de crimes de trânsito, por exemplo, é comum que o juiz opte pela soltura com imposição das medidas. De 2019 a janeiro de 2023, apenas 71 pessoas que cometeram crimes de trânsito — entre eles, homicídio culposo, omissão de socorro, embriaguez ao volante ou fuga do local do acidente — ficaram presas após a custódia e 3.347 foram liberadas.
Welliton Caixeta Maciel, especialista em segurança pública, avalia que, como pontos negativos, as audiências de custódia correm o risco de serem utilizadas como mera etapa processual da rotina judiciária. Para ele, é necessário ter cautela na aplicação das medidas alternativas à prisão e cuidado ao avaliar a complexidade dos casos. "Tenho percebido no DF que os juízes têm aplicado muitas tornozeleiras, mas não se preocupam com o pós decisão. Há casos que já vi em que a pessoa estava na quinta monitoração e era um potencial reincidente. O que me preocupa é o uso dessa alternativa em casos de violência doméstica, por exemplo", enfatiza o pesquisador do Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília.
Cárcere
A superlotação carcerária é um problema nacional. No DF, há mais de 15 mil detentos em celas físicas que estão divididos em seis unidades prisionais, segundo dados colhidos entre janeiro e junho de 2022. Uma das finalidades da audiência de custódia é desafogar o sistema prisional. O juiz Guilherme Marra avalia que as liberações em custódia refletem diretamente no cárcere, evitando, por exemplo, o encarceramento desnecessário e permitindo uma melhor administração dos presídios, bem como gerar economia ao erário. O levantamento do Depen mostra que, até 30 de junho de 2022, o DF disponibilizava de 8.651 vagas para um total de 15.077 presos. Ou seja, um deficit de 6.426 vagas. Para o Núcleo de Controle e Fiscalização do Sistema Prisional do Ministério Público (Nupri/MPDFT), porém, reduzir o contingente de presos no sistema carcerário não é a finalidade da audiência de custódia. "Deve servir para verificar a legalidade e a regularidade do ato prisional", considera a promotoria.