Jornal Correio Braziliense
Saúde

Correio mostra a angustiante espera pelo transplante de órgãos no DF

Quase 700 pessoas estão na fila por um órgão no DF. O Correio conversou com pacientes, que relataram o drama de aguardar o procedimento. Para o presidente do SindMédico-DF Gutemberg Fialho, faltam políticas públicas permanentes

No meio da crise na saúde pública do Distrito Federal, pacientes aguardam por um transplante de órgãos. São 685 pessoas à espera da cirurgia — seja de coração, de fígado ou de rim —, de acordo com dados do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), vinculado ao Ministério da Saúde. A maior parte deles, 92% até a última atualização, esperam por um rim (confira no infográfico). A situação se agravou com o advento da pandemia da covid-19, quando as cirurgias tiveram de ser canceladas por pelo menos um ano, segundo a secretária de Saúde, Lucilene Florêncio (leia abaixo).

Um dos pacientes renais é Eliane Cristalino, 41 anos, que há pouco mais de dois anos entrou na fila por um rim. Ela conta que descobriu o problema há 13 anos, durante exames. "Eles detectaram traumas, que fizeram os rins diminuírem de tamanho", detalha. "Só que no começo segui minha vida normalmente. Foi quando tive uma gravidez e, durante esse período, os rins sobrecarregaram", acrescenta. Foi nesse momento que a moradora do Riacho Fundo 1 entrou para a hemodiálise. "Por conta disso, a neném nasceu prematura e acabou não sobrevivendo. Ela ficou só cinco dias fora da minha barriga. Ela faria 13 anos agora em maio, inclusive", lembra Cristalino.

De acordo com a comerciante — que teve uma aposentadoria forçada —, os médicos esperavam que, quando o bebê fosse retirado, os rins voltariam a funcionar, mas não foi o que aconteceu. Ela conta que foram muitos anos até aceitar que, de fato, necessitava do transplante. "Somente quando passei a não urinar e a sofrer todo o 'peso' que é a hemodiálise. Quer dizer, um dia você está bem e no outro não. É uma 'montanha-russa' muito íngreme. Inclusive, desde o começo, o pessoal me mandava para o Hospital de Base (para possibilidade da cirurgia), mas quando chegava lá, me dava pânico", recorda.

Ansiedade

Desde que entrou na fila pelos órgãos, Eliane Cristalino afirma que é pura ansiedade. "É tudo o que mais quero, atualmente. Até porque sou extremamente dependente do tratamento, que faço três vezes por semana. Não posso faltar a nenhuma sessão, caso contrário fico toda deformada e sinto coisas que não consigo nem explicar", relata.

Com lágrimas escorrendo pelo rosto, ela conta que é muito difícil lidar com toda a situação. "Ver que poderia estar evoluindo, crescendo e melhorando, mas estou 'travada' por conta do tratamento", desabafa. "É justamente por isso que não aguento mais ficar na hemodiálise. Quero voltar a ser independente e seguir com a minha vida. Tranquei meu curso de direito no quarto semestre e vendi meu negócio há muito pouco tempo, por não dar conta de tocar", complementa.

Rotina cansativa

Quem também aguarda por um rim é o aposentado Bismar Teles, 51. Desde 2013, o morador da Colônia Agrícola 26 de Setembro percorre 70km por dia, três vezes na semana, para fazer a hemodiálise. "Descobri a necessidade depois que, naquela época, não aguentava fazer qualquer atividade física, passando até a urinar sangue", relata.

"Faço check-up anual desde 1990, mas sempre falavam que era só uma alteração no sangue, nunca me mandaram para um especialista. Quando fizeram isso, era tarde demais. Talvez, se tivessem agido mais rápido, eu não estaria na fila do transplante", lamenta.

Assim como Eliane, o aposentado reclama da rotina cansativa que o tratamento impõe. "São 10 anos aguardando. Se pudesse, teria transplantado no dia que descobri sobre a necessidade. É muito cansativo ter que levantar, dia sim dia não, para fazer a hemodiálise", afirma. "Meu problema é só a falta do órgão. Pode ser até de um cadáver, mas no Brasil é difícil. Tenho parentes que podem doar, mas não entendem muito do assunto e acabam tendo medo", comenta.

Conscientização

Os dois entrevistados concordam que falta, por parte das autoridades, maior divulgação sobre a importância de ser um doador. "Não existe nenhum tipo de publicidade que incentive a doação de órgãos. Você não vê na televisão, por exemplo, qualquer propaganda sobre o assunto", lamenta Brismar Teles. Eliane reforça a fala do aposentado. "A nossa realidade deveria ser amplamente veiculada. Até porque aquilo que não é visto, não é lembrado ou conversado. Eu mesma, antes de entrar para a hemodiálise, nem sabia que existia", confessa.

E eles estão com a razão, de acordo com o presidente do Sindicato dos Médicos (SindMédico-DF), Gutemberg Fialho. Ele acredita que, para melhorar o cenário dos transplantes, a melhor saída são políticas públicas permanentes e não sazonais, como acontece em outros tipos de campanha. "É preciso difundir sobre a importância da doação de órgãos, não só nas grandes mídias, mas nas escolas, faculdades e outros espaços", reforça.

"Além de criar esse desejo na população, é necessário que se contrate mais equipes especializadas, além de dar melhores condições de trabalho a elas", complementa. O médico aponta o que pode estar causando a demora para a realização dos transplantes na rede pública de saúde. "Equipes insuficientes, falta de condições de trabalhos e de políticas públicas de captação de órgãos eficientes", enumera. De acordo com Fialho, a quantidade de cirurgias de transplantes está abaixo da média histórica. "Só no Hospital de Base, eram feitas cerca de 100 cirurgias por ano. Atualmente, esse número está bem menor", lamenta.

Fortalecimento

A secretária de Saúde do DF, Lucilene Florêncio, comentou que a pasta está preparando um contrato regular de transplantes no DF. "Todo o processo para a construção e publicação do documento está sendo finalizado. Quero que em, no máximo, 40 dias esteja pronto", previu. "Esse edital vai para o mercado e vamos ver quais as unidades se candidatam. Pode ser qualquer local que faça transplante. Com isso, esperamos diminuir a fila". O Correio perguntou para a secretária sobre as principais dificuldades para a realização dos transplantes na rede pública, mas até o fechamento desta edição, não houve retorno.

Para Florêncio, as principais dificuldades enfrentadas para realização dos transplantes estão diretamente relacionadas à conscientização da população sobre a importância da doação de órgãos. "Não é mais como antes. Não dá para colocar na carteira de identidade que você é um doador, é preciso um consentimento da família", ressaltou. "Temos profissionais capacitados, mas precisamos fazer campanhas para fortalecer a rede de captação, pois, infelizmente, temos fila para todos os tipos de órgãos no DF", reconhece.

Pandemia 

Além disso, a secretária também lembrou da pandemia, afirmando que ela afetou o andamento da fila. "Fazendo uma conta rápida, tivemos 700 mil mortes pela covid-19, ou seja, foram 700 mil possíveis corações que poderiam ser doados", calculou. "Mas, naquele momento, não era possível nem ter contato com o corpo de quem perdia a vida para a doença", acrescentou, destacando que, naquele período, profissionais foram deslocados para a linha de frente do combate à doença.

Ed Alves/CB - Segundo Gutemberg Fialho, o número de transplantes nos hospitais do DF está abaixo da média histórica
Minervino Júnior/CB/D.A.Press - Quando vai à hemodiálise, Bismar Teles precisa percorrer 70 km, o que torna a rotina cansativa

O que fazer para ser doador?

Para ser doador não é necessário deixar nada por escrito, em nenhum documento. Basta comunicar sua família do desejo da doação. A doação de órgãos e tecidos só acontece após a autorização familiar. Há dois tipos de doadores:

- Doador vivo: Qualquer pessoa que concorde com a doação, desde que não prejudique a sua própria saúde. Ela pode doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão. Pela lei, parentes até o quarto grau de cônjuges podem ser doadores. Não parentes, só com autorização judicial;

- Doador falecido: São vítimas de lesões cerebrais irreversíveis, com morte encefálica comprovada por realização de exames clínicos e de imagem.

Fonte: Painel InfoSaúde-DF