Quatro camas — duas por quarto. Fotos, um origami e um pôster de anime ornamentam as paredes brancas. Livros de física, cálculo e computação espalham-se pelas mesas. O cenário é de um dos apartamentos da Casa do Estudante Universitário (CEU), da Universidade de Brasília (UnB).
Há tempos, a CEU é um mito na instituição, seja pelas festas e figuras ilustres que abrigou, seja pelas histórias diversas que se propagam. O prédio modernista ergue-se a mais ou menos 2km do Minhocão.
O letreiro gasto, desbotado pelo sol e pela chuva, dá uma pista de sua idade. Inaugurada em 1972, o plano inicial era construir oito blocos, como uma superquadra, mas nunca foi concluído.
Hoje, vivem lá 360 alunos-hóspedes, distribuídos em 90 apartamentos. Em dois blocos, com janelas que estendem toalhas recém-lavadas e portas vermelhas, o alojamento acolhe estudantes de fora de Brasília, alguns de outros continentes.
Cada apartamento é composto por sala, cozinha, área de serviço e dois banheiros (para não ter briga antes da aula). Geladeiras, camas, microondas, guarda-roupas, filtros e televisão estão entre os equipamentos.
É lá que o congolês Samy Nsenda, 26 anos, vai passar os próximos anos. Para chegar ao apartamento, ele entra pela portaria, cumprimenta o segurança e sobe 16 degraus de escada.
Pelo corredor, observa-se as tapetes, potes com ração portas coloridas e cheias de adesivos. "Mudar as coisas me interessa mais", diz um deles. Outro, em letras garrafais, ordena: "Por favor, tire a p… do sapato!!". Na porta da casa de Samy não há nada. É lisa, "para não levar bronca da coordenação".
O estudante de engenharia da computação mora com outros três colegas, um homem e duas mulheres. "A gente ri bastante, faz todas as coisas juntos, limpamos, fazemos nossa comida", explica, enquanto dá uma rápida faxina no ambiente.
Na estante, caixas de sapatos, algumas palmilhas perdidas, livros, um álcool em gel e um guarda-chuvas se encaixam com perfeição para caber no pequeno espaço.
Em frente, uma mesa que se estende por dois metros e meio mantém alguns computadores e outros objetos. Do outro lado, os materiais de estudo dão lugar aos utensílios de cozinha e alimentos.
Essa é justamente a parte que Samy mais gosta na CEU: a estrutura. Quando chegou ao Brasil, em 2018, passou por repúblicas no Núcleo Bandeirante e na Colina (conjunto de prédios erguidos para os professores da UnB). "Aqui é bem organizado, tem segurança. Nos outros lugares não era assim. Qualquer um podia entrar", lembra.
Samy é de Kinshasa, capital do Congo. Fazia medicina quando desistiu de tudo para estudar em Brasília. Era um sonho morar fora. Assistir seus irmãos indo para os Estados Unidos, África do Sul e Canadá atiçou ainda mais essa vontade.
Surgiu a oportunidade, se inscreveu e passou. A funcionária da embaixada brasileira olhou para Samy e disse: “Já se considere no Brasil”. Daí foi um ano até desembarcar no novo país. "Aos poucos, fui largando a medicina, meu coração já estava aqui", relembra.
"Antes, o que eu conhecia do Brasil era o samba, o futebol e o Ronaldinho", brinca. Em Brasília, ele conta que encontrou um povo acolhedor, um clima bom e mulheres bonitas. "Todo mundo sabe jogar bola no Brasil, é incrivel!"
A única parte que ele não gosta na CEU é o barulho. Entre o riso e a indignação, ele fala da potência vocal do vizinho de cima. "Eu não sei o que ele canta, mas é muito alto. Se chega aqui embaixo, imagino ao lado?", comenta, apontando para cima.
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Desafio diário
Para muitos, a CEU é verdadeira morada. Alguns chegam expulsos de casa. Outros, estão fugindo das brigas familiares. Para quase todos, é a primeira experiência morando longe da família. É quando aprendem as pequenas tarefas do dia a dia, como cuidar da casa, preparar a comida e administrar o próprio dinheiro.
"Geralmente, você escolhe o que vai ficar bem-feito e o que vai ficar mal feito", revela Patrick Máximo, 21, que veio de Anápolis (GO) para cursar engenharia elétrica na UnB.
Ele se divide entre os câmpus Darcy Ribeiro e do Gama, o estágio e a limpeza da casa. "Acho que o que vai ficar mal feito nesta semana é arrumação da casa", confidencia o estudante, que está em período de provas.
Está no seu segundo apartamento. Saiu do primeiro porque os colegas não cumpriam a meta de limpeza. Agora, no 116, as regras são claras — tirar o lixo, limpar o ambiente, pelo menos, uma vez na semana e não deixar louça suja na pia.
Antes de morar na CEU, Patrick pagava R$ 560 em uma república do Gama. O dinheiro vinha das aulas de robótica que dava em escolas. Aprendeu em um curso gratuito. “Parei de dar aula. Vamos dizer que é exaustivo e a remuneração não é muito boa”, ironiza.
O futuro é uma incógnita. Para Patrick, a engenharia é um divisor de água, que pode levar ele para qualquer lugar, e ficar na capital não é uma alternativa. “Brasília é muito cheio, tem muita gente, não é o tipo de vida que eu estou acostumado a viver. Muitas coisas acontecem ao mesmo tempo, e eu não consigo acompanhar".
Laços Esticados
Se, por uma lado, existe muita coisa nova, por outro, muito fica para trás. A ida de um jovem para a CEU não se restringe a ele. No meio dessa história pode ter uma namorada, um pai e uma mãe que nem sempre compreendem os motivos da saída. É nesse momento que as lágrimas se tornam tão comuns quanto os risos.
"Caramba! Eu entrei, como?", disse surpreso Marcelo Lima, quando viu seu nome no topo da lista de selecionados para a UnB. A mãe ficou feliz pela vitória do filho e triste quando percebeu que ele ficaria a 3 mil quilômetros de distância. "A saudade sempre vai existir, mas a gente acaba criando uma nova rotina. Você aprende que não vai voltar mais para casa", diz, conformado.
Marcelo saiu de São Gabriel da Cachoeira, município de 47 mil habitantes, mas o terceiro maior em extensão no Brasil.
Pode não parecer, mas todo mundo conhece São Gabriel da Cachoeira. Pelo menos no mapa. A região é a “cabeça do cachorro” que fica no extremo noroeste do Amazonas. Também é o município mais indígenas do país, nove a cada dez moradores têm origem nativa. Incluindo o estudante de 24 anos, que é do povo Araçá
"Só conhecia Brasília pelos livros de história". Na capital federal, ele entrou para o curso de direito, começou o estágio no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e virou figura recorrente nas festas da atlética da universidade.
O também nortista e companheiro de saudade é Arthur Rocha. Com quase um ano sem abraçar a família, ele reprime a cada dia o desejo de voltar para Parauapebas (PA). O sentimento, porém, para o jovem de 21 anos é pior. Quando saiu de casa, não conseguiu se despedir da mãe e da avó, que havia descoberto um câncer.
Na CEU, ele pensava em ir visitá-la. “Não precisa vir. Você tem que focar nos estudos”, dizia a avó. Arthur atendeu o pedido e não foi. “Foi o maior arrependimento da minha vida. Se eu tivesse ido, veria minha vó pela última vez”. A avó de Arthur morreu sem ver o neto vestir a beca
A ideia de estudar na UnB começou em 2015. Ainda adolescente, ele veio à capital e se encantou. A partir daí começou a bolar um plano: entrar em um curso menos concorrido e, então, pedir transferência interna para o de tecnologia.
Deu certo. Em 2019, ele entrou em geofísica e logo mudou para engenharia de software. "É uma área com a qual tenho maior afinidade. Eu era aquela criança que se você deixa sozinha e ela começa a desmontar as coisas para saber como é por dentro", recorda.
Hoje ele orgulhosamente menciona o conjunto de letras e números: “C.E.U, BL. A, APT 114”. O visitante que chega na casa de Arthur é recebido por uma samambaia, uma paisagem verde e outras plantinhas em cima da mesa de estudos. Às vezes um macaquinho ou um tucano desce das árvores para fazer companhia ao estudante.
Arthur teve o privilégio de poder escolher os colegas de apartamento. Todos, em algum momento, passaram por problemas nos antigos dormitórios.
Foi quando tiveram a ideia de se juntarem. "É muito mais fácil morar com pessoas que você gosta. São meus melhores amigos", afirma Arthur, que assim vai disfarçando a saudade da família.
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Perseverança
A CEU é destinada a alunos de baixa renda. São filhos de pessoas que não concluíram o ensino fundamental e trabalham no mercado informal. É aí que se manter na universidade se torna um problema maior do que entrar.
Diferente dos vizinhos, Natália Araújo, 22, não veio de tão longe. Até pouco tempo, era moradora de Águas Lindas (GO).
Sem trabalho e para economizar o dinheiro dos pais, pegava três ônibus ("lotados, viu?") por dia para estudar no câmpus Darcy Ribeiro. Acordava às 5h e chegava às 20h, exausta.
"Não aguento mais, estou morta. Vou tentar uma vaga lá (na CEU)", prometeu a si mesma, após seis meses de canseira. Natália sabia que a família. Por isso só avisou que iria para a CEU um dia antes da mudança. "Minha mãe começou a chorar e meu pai ficou chateado", revela.
Não foi egoísmo. Natália saiu de casa pensando neles. A mãe tem o fundamental e o pai nem entrou na escola. Ela vai ser a primeira pessoa da família com curso superior. “E numa federal”, acrescenta exaltada. Vai poder encher a boca e falar “Sou cientista da computação”.
Além de viver no conjunto universitário, a estudante recebe o auxílio socioeconômico da UnB, de R$ 465, uma ajuda muito bem-vida para comprar comida e itens de higiene pessoal. O que sobre manda para casa. "É isso que me dá forças para continuar, me esforçar mais, porque eu sei que posso dar uma coisa melhor para meus pais. Fazer com que eles não trabalhem mais”.
*Estagiário sob a supervisão de Malcia Afonso
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