"Somos a ponta da flecha", compara Júnior Xukuru Ororubá, de Pesqueira (PE), que mora em Sobradinho. O termo se refere à posição estratégica na organização indígena nacional por estarem em Brasília prontos para emergências em manifestações políticas. Ele é membro do Conselho Indígena (CIDF) e estima que 10 mil indígenas morem no Distrito Federal, de acordo com informações colhidas em programas como as campanhas de vacinação.
Oficialmente, os dados mais recentes sobre indígenas que migraram de outros estados para Brasília são de 2015, da extinta Codeplan (Companhia de Planejamento do Distrito Federal), que utiliza os mesmos números do IBGE de 2010. Contam 6.128 no DF. "Somos 78 povos em Brasília. Número expressivo, já que são 305 no total no Brasil", compara Júnior Xukuru.
Os motivos de virem e permanecerem no DF são variados. "Muitas vezes por saúde ou educação. Trazem as famílias e, durante o tratamento, os filhos vão para a escola, as famílias vão criando raízes e acabam ficando", cita Júnior. Alguns chegam aqui para resolver problemas na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e participar de audiências em tribunais e acabam ficando na capital.
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Júnior chegou em 2009 para resolver imbróglios da organização indígena da qual é parte e se instalou com parentes em 48 hectares próximos ao Ribeirão Sobradinho, a menos de 100 metros dos prédios da quadra 9. O lugar é ocultado pela vegetação do Cerrado. Ele diz que ali existem 12 nascentes e o lugar é habitado por tucanos, araras, veados e "até onça". No local, os Xukuru celebram o ritual Pisada do Toré, usando as barritilhas típicas de palha na cabeça, com cantos e maracá. Quando tocam o memby (flauta), vão batendo o jupago, uma espécie de raiz de batata da qual fazem uma borduna, em chamamento aos espíritos. A religiosidade é para eles uma forma de resistência e acolhimento.
A área em Sobradinho serve também de ponto de apoio para povos que vêm a Brasília. Foi cedida aos Xukuru pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU). "Foi uma retomada que fizemos em 2015", lembra Júnior. O local era ocupado por uma igreja. Segundo ele, quem orientou a reivindicação foi Santxiê Tapuya, que criou o Santuário Sagrado dos Pajés, no bairro Noroeste, no final da Asa Norte. Ele chegou na capital nos 80 e morreu em 2014.
O Noroeste hoje têm, além do santuário, três reservas indígenas. Tuxá, Guajajara e Kariri Xokó, onde vive a cacica Tanoné Kariri Xokó. Sobrevive do artesanato que vende e de algumas palestras que faz para a LBV (Legião da Boa Vontade). Ela chegou em 1986 para tratamento de saúde, vinda da aldeia Porto Real do Colégio, de Alagoas. "Recebi a palavra do grande espírito para consagrar um remédio da mata e me curei." Na aldeia onde cresceu ser indígena significa conhecer o segredo do Ouricuri, ritual ao qual se mantém fiel até hoje, ali mesmo nas matas ralas do bairro de classe média.
No Santuário dos Pajés também mora o jovem Fêtxawewe Tapuya Guajajara Veríssimo, que cursa Ciências Sociais e é presidente da Associação dos Acadêmicos Indígenas da UnB (AAIUnB). Ele relata que a UnB tem 251 estudantes indígenas na graduação e pós-graduação. Poucos moram na casa do estudante da universidade. "Moram nas periferias do Distrito Federal. O maior número é de Ticuna, do Amazonas, são 61, residentes em pequenas repúblicas em São Sebastião", conta.
Racismo
Fêtxawewe lembra que ao chegar a Brasília os estudantes indígenas sentem o choque cultural. "O mais forte é a língua. Também sentem dificuldades com locomoção, e a cidade é muito cara." Outra característica são os relatos sobre racismo. "Já tive professor na antropologia que me perguntou se sou 'índio de verdade'. Eles estudam indígenas, fazem trabalhos com foco em comunidades indígenas, mas não os compreendem. Os preconceitos são piores ainda quando são indígenas do Nordeste. Já chorei por isso. Me tornei mais forte, mas chorei, quis desistir. Mas não posso, minha família acredita muito em mim". A ideia dele é se formar e usar o conhecimento profissional para ajudar na luta indígena.
"Na UnB tem bullying. Nos tratam como inferiores e fazem piadinhas. Muitos alunos são reprovados porque se sentem maltratados e voltam para as aldeias", assegura a estudante de mestrado em linguística antropológica Elenira Oliveira, do povo Apurinã, do Acre, que mora na Vila Planalto. Desde os 17 anos, ela leciona matemática, português, artes, línguas indígenas e linguagem de sinais própria dos indígenas para surdos.
Elenira diz que geralmente o português é uma das grandes dificuldades para o ingresso e permanência de indígenas nas universidades. "Muitos povos não falam a língua dos colonizadores nas aldeias. E somente com o domínio do idioma os estudantes conseguem se apropriar do conhecimento", enfatiza. A professora critica as universidades brasileiras por praticamente não terem contratos com professores especializados para acompanhar os estudos dos alunos.
De pai para filhos
“Nasci no Santuário Sagrado dos Pajés”, conta Fêtxawewe, 23 anos. Ele é filho de Santxiê Tapuya e relata que a origem de seu povo em Brasília começa com “os Veríssimo”, nome que usavam para ocultar a etnia por causa do preconceito. Como dezenas de outros povos, “ressurgiram” após a homologação em 1988 da Constituição Federal, por que a legislação passou a lhes garantir direitos fundamentais como a terra.
Fêtxawewe diz que no bairro de classe média, onde se situa o santuário, há um juazeiro plantado para feitura de remédios tradicionais pelos Veríssimo. “A gente resgata pra não esquecer nossos ancestrais. Os primeiros chegaram como candangos por volta de 1957 durante a construção de Brasília”. “Temos laudos antropológicos que comprovam que nossos antepassados estavam aqui, com registros de potes de cerâmica. E que antes deles outros indígenas também estavam aqui, pois há um cemitério aqui no local do santuário”.
São mais de seis décadas de luta pelo direito de ocupação da terra, reconhecida pelos Veríssimo como local sagrado e por outros pajés que estiveram com Santxiê. “Eu tinha 14 anos quando meu pai morreu, com uns 56 anos de idade. Ele documentava tudo, catalogava e tinha algumas fotos dos antigos parentes”.
“Meu pai criou o santuário como local de passagem para os que precisavam vir a Brasília e de intercâmbio, com agendas políticas e espirituais. Ele recebia curandeiras, pajés e outros chefes de saberes da cura”.