"Nossas tradições não vêm do passado, estão ligadas ao futuro", diz o pernambucano Tico Magalhães, artista popular que criou um mito fundador para Brasília, baseado em uma cosmologia muito própria, que atiça amadores a pensarem que é preciso estudar um pouco de antropologia para seguir a sua imaginação lógica de construção de um mundo novo neste Planalto Central. Ele quer dizer que uma cidade tão nova não poderia calcar seus alicerces culturais somente nas raízes dos tantos lugares de onde veio tanta gente habitá-la.
E o que parece uma conversa um pouco metafísica tem razões de existir. Tico explica que, ao chegar em Brasília pela primeira vez, foi convidado a integrar um grupo de maracatu. Mas, não fazia sentido. "O maracatu não é um produto. Assim, fazer maracatu aqui me pareceu sem sentido, perdia a essência. Eu entendo lá em Pernambuco, pois lá se louvava o rio e se conectava com as pessoas que eram de lá. Precisávamos louvar as coisas daqui", destaca. Buscar sentido, para ele, é comungar com as coisas daqui e com quem é daqui.
Assim, foi nascendo e escrevendo o que seria um convite a brincar e, com a brincadeira, ir criando tradições. Mas ele garante que não tem pretensão que sejam essas "a cara de Brasília, pois Brasília tem e deverá ter muitas caras". Nasceriam a partir daí o Mito do Candango Voador e Outras Histórias do Cerrado, que conta a saga do surgimento do bioma ao surgimento da capital federal, poeticamente ilustrado por ele mesmo. E criou o grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro, a Orquestra Alada, o Samba Pisado e o Centro Tradicional de Invenção Cultural, que há 19 anos ocupa uma área na 813 Norte, entre a Embaixada da China e do Iraque.
Festas inventadas
"Tradições também engessam. E somente uma cidade aberta, uma cidade sonhada como Brasília poderia ter essa tradição de futuro. A invenção mora em Brasília", explica Tico. Ele inventou uma tradição na modernidade, mas bebe nas fontes antigas. Abraça e é abraçado por mestres culturais velhos que participam das festas inventadas: Laiá, mãe de Seu Estrelo, Seu Estrelo e o Calango Voador.
Tudo começou a acontecer quando Tico Magalhães descobriu a si próprio. "Eu sou de uma família de classe média baixa. Mas, aos 15 ou 16 anos subi o morro no Alto José do Pinho, em Recife, conheci então o maracatu Estrela Brilhante e mestre Walter. A classe média não tem acesso a isso. Depois vim para Brasília, e o cerrado me assombrou. Nasci virado para o mar e me criei no mar, estava de costas para o país. Fui então conhecer as cachoeiras'", ressalta.
"Fiz publicidade, mas minha formação mesmo foi toda na cultura popular", relata. Não havia ninguém na família ou alguém próximo que o tenha influenciado. Mas ele diz que hoje pensa que sim. Afinal, a mãe tinha formação em medicina com passagem por Cuba e a carreira iniciada tratando hanseníase, "doença de pobre", e o pai sempre trabalhou com questões agrárias e vinculadas a trabalhadores rurais. "Ambos do movimento social", reforça.
Comunidade
Em Brasília, as brincadeiras acontecem de dois modos, basicamente. "Seu Estrelo traz encantamento para dentro e a Orquestra passeia com as figuras na cidade, Ceilândia, Planaltina, nas praças e becos, e assim cumpre sua missão", explica. O "dentro", ele quer dizer as festas que acontecem numa espécie de descampado entre as duas embaixadas, onde já havia uma comunidade pobre, que cresceu principalmente na pandemia. Seus vizinhos. Há uma interação entre o centro e a vizinhança, especialmente nas lutas comunitárias pela moradia, por estarem no Plano Piloto. "Território é alma e trincheira", observa o artista.
"Fazemos festas em que chegam 4 mil pessoas aqui", celebra. Ele diz que as brincadeiras são para brincar apenas, para criar, fazer figura (teatro) e se bastam em si mesmas, como um fazer cultura despreocupado. No Centro Tradicional de Invenção Cultural são realizadas oficinas. Ao mesmo tempo, têm palavras muito claras que conduzem todo o seu trabalho: decolonizar, poder de renovar, transformação social. "Não é só distração", afirma.
A cosmologia de Brasília começa assim: "No tempo em que só existia o dia no mundo, várias coisas já viviam e todas tinham um ruído, um canto, uma fala. Assim, toda vez que aparecia um barulho novo, uma nova criatura tomava vida". Um dia, nos movimentos da vida, encontrou o escritor e líder indígena Ailton Krenak. Pensou em lhe apresentar o Mito do Calango Voador. Mas temeu a resposta. Ousou. E acabou gostando da resposta. "O impressionante é que o mundo nasce todo dia", se admirou o filósofo indígena.