Jornal Correio Braziliense

ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

Cine Brasília: a história do primeiro cinema da capital atravessa gerações

Frequentado por gerações de cinéfilos de várias regiões do DF, o local faz parte dos monumentos que representam o modernismo na capital do país

Morador da capital, desde 1972, o arquiteto Carlos Madson, 68 anos, não faz mistério da motivação para ter parado em Brasília: foi a arquitetura de Oscar Niemeyer que mobilizou o então estudante da Universidade de Brasília (UnB). Dentro daquele que é considerado o templo de cinema da cidade, o Cine Brasília (EQS 106/107), Madson atenta para a qualidade da programação, numa afinidade emocional com o constante reencontro mantido com amigos naquele cinema.

Nas percepções, Madson é catedrático: "Certamente é a casa de cinema mais bonita do Brasil. É uma instalação contemporânea e há qualidade na projeção. Ainda existe a questão de ser um projeto de Oscar Niemeyer. É um patrimônio, efetivamente, da cidade de Brasília e do país". Ao lado dele, a esposa Ângela Meira, 67, reitera que, por mais de uma vez na semana, eles ocupam poltronas do cinema.

O casal, que mora na 108 Sul, em recentes anos, guardava a, contornada, "maior tristeza de ver o abandono" imperando no local. "Antes, o cinema estava relegado a quinto plano pelos governos. Frequentemente, agora, vemos o cinema cheio, de novo, depois de revitalizado. Retomaram até as sessões matinais para as crianças. A programação é maravilhosa, foge daquela dos filmes de Hollywood, que se vê em qualquer cinema", observa a também arquiteta Ângela. Regular espectadora das mostras oferecidas no Cine Brasília, ela ainda se empenha em repassar o gosto pela sétima arte para os netos Henrique, 19; Eduardo, 16 e Enzo, 12.

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Laços

Uma descoberta, a partir da mostra de filmes orientais, exibidos em caráter gratuito, uniu ainda mais os amigos de UnB Reriston Martins, 25, mestrando em ciências sociais, e as amigas Kássia dos Santos, 26, estudante de filosofia, e Thayuany Rodrigues, 25, também estudante de ciências sociais. "Elas também são da periferia, do Entorno de Brasília. Ficamos encantados com o espaço do Cine Brasília. A energia que tem remete à construção da cidade: você vê a capital voltada para todas as classes — num convite à ampla discussão de arte", avalia Reriston, morador de São Sebastião.

A ida ao cinema veio como consequência da entrada na universidade. "Na periferia, há coisas que não chegam na favela. Lá, há uma carência de cultura, de cinemas, shoppings e teatros, tudo fica concentrado no Plano Piloto. Quando tem algo voltado para cultura, normalmente é uma atração precária. Descobri o Cine Brasília por meio de um documentário sobre a construção de Brasília", conta o mestrando que celebra a acessibilidade a todos, "tanto à classe trabalhadora quanto às outras". Com estímulos à frequência, dado o "preço justo", Reriston já anotou na agenda outros elemento de atração: o futuro Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, tradicional impulso de público para o Cine Brasília, desde 1965.

Inaugurado em 23 de abril de 1960, o Cine Brasília, à época arrendado pela Luiz Severiano Ribeiro Ltda., seguiu na linha de priorizar o fluxo de filmes nacionais, a partir de convênio com a Embrafilme em 1980. "Hoje, o renome do Cine Brasília vem do festival e de mostras especiais que contemplam dados de raça e gênero, além das mostras promovidos em co-patrocínio com embaixadas. Nisso, temos uma parcela de público que não é o vista costumeiramente nas outras salas de cinema", comenta o programador da sala, Sérgio Moriconi.

Nove anos antes do lançamento do Cine Atlântida, que trouxe 1,2 mil poltronas de cinema para a cidade, e 27 anos antes da realidade da inauguração das oito salas do ParkShopping, que tornaram, temporariamente, Brasília detentora do título de maior complexo de cinemas da América Latina, o Cine Brasília emergiu. Quase 50 anos depois, foram intensificadas as queixas quanto à segurança, iluminação, ar-condicionado e poltronas quebradas. Dois anos depois, veio o anúncio da reforma, efetivada em 2013. Sinalizando resistência, numa realidade em que sucumbiram os antigos 850 lugares do Cine Karim, os 800 do Cine Márcia 800 e os quase 1,5 mil totalizados pelos extintos Miguel Nabut, Badya Helou e Bristol, o irmão mais velho do Drive-in (criado em 1973), permanece ostentando 606 lugares.

Novos tempos 

Arquivo Pessoal - Kássia, Thayuany e Reriston: ponto de encontro e de bate-papo sobre cinema
Minervino Júnior/CB/D.A Press - Whitney Gonçalves gosta de filmes vanguardistas como Raquel 1:1
Minervino Júnior/CB/D.A.Press - Ângela Meira e Carlos Madson: valorização da programação e da arquitetura do Cine Brasília
Minervino Júnior/CB/D.A.Press - Rariston Martins: antenado no Cine Brasília
Ricardo Daehn/CB - Ilca de Castro Lemos com a filha Morena: descobertas na 508 Sul
João Miguel J?nior/Divulgação - Maeve Jinkings
Nash Laila/Divulgação - Tulio Starling

Reaberto em agosto passado, depois de fechado por quase três anos, em função da pandemia e outros fatores, o Cine Brasília teve atividades retomadas, a partir da implementação de um modelo novo de administração, que fundiu aparatos da Secretaria de Cultura e Economia Criativa aos da organização da sociedade civil Box Cultural. "O principal êxito é o retorno do funcionamento regular do cinema, com a bilheteria digital, que foi um desafio proposto, junto com a comunicação que difunde melhor a programação. Temos implementadas políticas de gratuidade que alcançam, por exemplo, a ação da entidade Jovens de Expressão (Ceilândia) e alunos de audiovisual da UnB e do IFB, além da gratuidade para deficientes e acompanhantes. Isso torna a programação acessível e traz crescimento de público", avalia a diretora geral do novo modelo do local Sara Rocha.

"A programação infantil do Cine Brasília tem nos surpreendido muito positivamente. Ela vem gerando essa fidelização na sensibilidade de novos públicos, e estamos bem felizes", conta Sérgio Moriconi. Ele aponta, no apelo de programação abertamente cultural, feitos como os pagantes da mostra que destacou, em dezembro passado, os melhores filmes de 2022, "um enorme sucesso, com filmes que chegaram a público de mais de 200 pessoas". Com mais de três semanas de sessões, a exibição de documentários sobre personalidades como Clarice Lispector e Beth Carvalho mantiveram a onda de sucesso cravado pelas mostras de cinema.

Formada em direito, Whitney Gonçalves, 26, é das espectadoras adeptas de filmes que trazem questionamentos, e, moradora da Ceilândia, celebrou a implantação de agente facilitador da ida aos cinemas: a estação de metrô da 106 Sul. "Aqui se tem uma seleção que difere do que é oferecido pelas plataformas de streaming — sou tocada pelo que assisto. Vejo filmes com temas críticos, que incomodam, nos tiram do centro, e nos balançam", comenta. Espectadora recente do filme francês As histórias de meu pai, centrado em uma figura autoritária, Whitney se viu impressionada com a violência sofrida pela esposa do protagonista, castigada por sair para passear. Irmã de cinco homens, Whitney vê que passar o tempo no cinema gera reflexão. "O cinema nos deixa se descobrir no mundo, estando sozinha como sujeito. As mulheres demoraram a sair sozinhas, para eventos, num caminho no mundo para se descobrirem — acredito que com a arte, a gente se transforma. A gente que é mulher fica muito pra casa, para o serviço, e para cuidar do outro", enfatiza. Uma mudança se apresenta em curso.