Quando se pensa na história do comércio gastronômico e social de Brasília, é quase inevitável lembrar do Beirute. Sob o lema de ser "o bar mais tradicional da cidade", a casa foi inaugurada apenas alguns anos após a própria capital, em 1966. Rapidamente, o Beira, como é carinhosamente apelidado, se tornou tradição em Brasília, recebendo desde candangos até personalidades conhecidas que vinham visitar a cidade.
Por isso, não é incomum encontrar famílias que contam histórias marcadas pelo bar. A escritora e economista Eloá França, 63 anos, vive uma história íntima com o local desde os anos 1980. A mineira, moradora de Brasília desde os 11 anos, começou a frequentar o Beirute ainda nos tempos de Universidade de Brasília (UnB). "O Beirute era um bar onde frequentavam universitários, intelectuais e artistas. Um lugar de pessoas informais, despojadas, autênticas, diferente dos outros lugares de Brasília da época", relembra a escritora. "Lá, não tinha música ao vivo, mas era ocupado pelo barulho de vozes. As mesas do Beirute eram lugar de muitas conversas profundas, intelectuais e políticas, de todas as áreas", descreve.
Após o fim da graduação, as idas de Eloá ao Beirute continuaram, mas tomaram uma nova forma. No lugar das noites passadas no bar com os colegas universitários, a economista passou a frequentar o local durante os almoços de fim de semana com uma nova companhia — a filha Natália Magalhães. "Desde que eu me lembro, o Beirute sempre foi algo que fez muito parte da minha identidade. Para mim, o lazer do fim de semana girava em torno dos almoços em família lá, confraternizar de alguma forma, gerar novas amizades. Era muito importante para mim, como filha única na época, esse ambiente de socialização, de interação com outras crianças que também estavam lá com os pais", avalia Natália, hoje com 24 anos e formada em psicologia.
Após desenvolver uma relação própria com o Beirute, Natália passou por vivências similares às da mãe. No Beira da Asa Norte (107 Norte), onde as duas moram atualmente, ela se reuniu com os colegas de universidade — a mesma em que Eloá estudou há 40 anos —, e, hoje, leva os irmãos pequenos, por parte de pai, nos almoços de domingo. "É um lugar que representa não só a minha vivência em Brasília, como a dos meus pais. Eu sinto que, emocionalmente e afetivamente, estou dando continuidade a uma tradição familiar", pontua.
Afeto
Se, nos anos 1980, os universitários da cidade tinham como ponto de encontro o Beirute, atualmente eles marcam presença nos bares vizinhos da UnB. Concentrados na 410 Norte, os bares como Recanto Favorito, Bar do Mendes, Bar dos Amigos Raip, Moe's e Faculdade da Cerveja são tomados, diariamente, pelos estudantes da universidade pública. Para o potiguar Rômulo Luiz, morador de Brasília desde 2019, o conjunto de bares da Asa Norte foi essencial para uma construção de afeto pela cidade. "Minha primeira memória na 410 foi o dia da recepção de calouros que meus veteranos da faculdade organizaram. Nesse dia, conheci praticamente todo mundo do curso e fiz ótimas amizades. Foi simbólico, porque foi ali que eu tive o primeiro contato com algum lugar de Brasília. Até então, eu não conhecia ninguém nem nada da cidade", conta o estudante de engenharia ambiental.
Desde então, os bares adjacentes se tornaram um point para Rômulo. "Acabou se tornando algo rotineiro para mim, por ser um lugar perto, barato, no clima que a gente gosta e onde a gente pode fugir da realidade, conversar, falar da vida e beber um pouco", define. "Desde o início me senti acolhido, por ser ocupado por pessoas da mesma faixa etária que eu e que vivem coisas muito parecidas com as minhas, é uma questão de se identificar como tribo. Eu considero lá um lugar de conforto e refúgio. Lá, é a primeira coisa que me vem à cabeça quando eu penso em encontrar meus amigos e beber uma cerveja", complementa.
Na visão de Rômulo, a existência de locais voltados para esse público é essencial para gerar identificação entre as pessoas e para a expansão do ambiente universitário. "É claro que a universidade é um espaço acadêmico, mas eu acredito que momentos de descontração e integração entre os estudantes também acabam sendo um grande motivador de permanência das pessoas. Você acaba interagindo tanto com pessoas que vão atuar no mercado de trabalho com você, como com pessoas que estarão ao seu lado durante uma grande jornada, que é a graduação", opina.
Ocupando a cidade
É normal que turistas que vêm a Brasília brilhem os olhos ao saber da existência de um Setor de Diversões na capital, no entanto, os moradores da cidade sabem que foi só recentemente que o espaço passou a ser visto, de fato, como um local divertido. O Conic, como é popularmente conhecido, foi idealizado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer para ser o centro cultural e de entretenimento de Brasília, projetado para receber cinemas, teatros, bares e restaurantes. No entanto, o projeto acabou não dando certo, resultando em uma marginalização do espaço, que, por muito tempo, foi mal visto pelos brasilienses.
Foi só em 2016, com a chegada dos bares Sub Dulcina, Birosca e Chicão, que a história do Conic começou a mudar. "Se o Conic, no passado recente, foi sinônimo de local perigoso e marginalizado, hoje ele é sinônimo de vida noturna e festas. É uma casa para os amantes de pop, funk, música eletrônica, música brasileira e samba", assegura Igor Albuquerque, responsável pelos três estabelecimentos. "Costumamos dizer que lá é o lugar ideal para que qualquer pessoa do Distrito Federal possa se encontrar por afinidade cultural, afinal, com apenas um ônibus você chega lá de qualquer região administrativa. É, sem dúvidas, o local de Brasília mais democrático para se divertir", afirma.
Apesar de abraçar todos os públicos da cidade, a Birosca procura ser um espaço de acolhimento da comunidade LGBTQIA , desde os clientes até os próprios funcionários — mais de 50% das pessoas que trabalham na casa são gays, lésbicas e pessoas trans. "A Birosca foi um dos primeiros locais da cidade a criar a Lista T, que possibilita acesso gratuito a pessoas trans, travestis e não-binárias. Há festas em que mais de 100 pessoas trans entram de graça. Além de acolhedora ao público, a casa tem como princípio criar palco para diversos artistas LGBT, que na maioria das vezes não conseguem se apresentar em casas voltadas unicamente ao público heterossexual", compartilha Igor, que também é produtor da Parada do Orgulho de Brasília.
Para o médico Artur Burle, frequentador do local desde a inauguração, o holofote dado aos artistas LGBT também é um dos principais diferenciais da casa. "A Birosca é uma das poucas opções para público e artistas LGBTQIA . Vejo que a casa dá muito espaço para artistas drags, trans e não binárias se apresentarem, o que considero uma iniciativa excelente. Para mim, a casa representa uma proposta de democratização do acesso à cultura no DF. A cena cultural de Brasília é muitas vezes excludente e elitizada, e rolês como a Birosca acabam sendo um foco de resistência e luta por uma vida cultural mais plural dentro da capital", pondera.
"Como homem, gay, cis, sempre fui muito bem acolhido na casa, por todas as equipes que ali trabalham, segurança, limpeza, bar. Apesar disso, entendo minha posição privilegiada dentro do movimento e sei que situações de preconceito podem sempre acontecer em qualquer ambiente que seja. Mas observo que a casa responde rápido a essas situações e está sempre aberta a escutar críticas e alinhar fluxos para tornar o ambiente ainda mais inclusivo e seguro para população LGBTQIA ", finaliza.