O Correio estava lá: um exemplar do Correio Braziliense de 3 de dezembro de 1982 auxiliou um administrador da loja de penhores Gold&Silver World Famous, de Las Vegas (EUA), a se livrar de um mau negócio na hora de comprar uma suposta relíquia do ex-presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan. O caso foi contado em um episódio da série Trato Feito, do canal History.
Um homem, não identificado, foi até o local para vender um chapéu de caubói que alegava ser de Reagan após ganhar de um "ex-presidente do Brasil". O item, todo preto, traz o nome “Otávio” em letras brancas maiúsculas em uma das laterais.
O vendedor contou ao administrador da loja de penhores que comprou o item da filha do assistente do presidente, David C. Fischer, durante o primeiro mandato de Reagan, entre 1981 e 1989. "Eu estou pedindo US$ 5 mil por ele. Eu nunca tinha visto um item como esse, é um chapéu de caubói do Ronald Reagan”, declarou o vendedor.
O comprador acredita na história e afirma ter “sentido dar um chapéu porque Reagan tinha um rancho e quando era ator era astro de filmes de caubói”. “Quem diria que um cara que fazia filmes e comédias iria se tornar presidente dos EUA?”, brincou o comprador.
Para comprovar a história do item, algo necessário para a venda de uma relíquia ou artefato precioso, o dono do chapéu levou uma carta assinada pelo assistente de Reagan e um recorte da capa do Correio de 3 de dezembro de 1982, que traz em destaque uma foto de Reagan com um chapéu parecido com o oferecido ao dono da loja de penhores na mão dele, quando saía da Embaixada Americana em visita a Brasília.
Na carta, David dizia que viajava com o presidente para todo lugar e que, inclusive, estava na foto tirada pelo jornalista do Correio e que estampava a capa do jornal. “Eu acompanhei o presidente durante a viagem pela América Latina e estava com ele quando o chapéu foi dado”, escreve o assistente na carta.
“O presidente me deu o chapéu e virou parte da minha coleção pessoal, que hoje passei para minhas filhas e elas decidiram vender itens que não a interessavam. O jornal que acompanha o item deve acrescentar uma documentação adicional para comprovar que a história ocorreu”, acrescenta David.
Uma dedicatória escrita em caneta de cor azul na aba interna do chapéu também foi apontada como prova de que o item era verdadeiro. “Sr. Regan, é com prazer que oferecemos a você esse chapéu que simboliza a abertura da democracia”, diz o escrito em caneta na aba interna.
Com as provas nas mãos, o comprador observou uma divergência entre a dedicatória feita na aba interna e a data da capa do Correio. “Temos um problema”, ele fala ao vendedor. “Essa dedicatória está datada 2 de dezembro de 1983”, declarou. Em resposta, o dono do chapéu diz que a pessoa que escreveu deve ter confundido as datas — a visita de Reagan a Brasília foi em 3 de dezembro de 1982.
“Eu até acredito que o chapéu é dele, porque entre tantas coisas para falsificar, ninguém falsificaria um chapéu de caubói. Mas se eu for vender, todo mundo vai dizer que não é a data certa e eu vou ter que dizer que erraram a data. Vai ser 10 vezes mais difícil de vender”, diz o comprador.
Em seguida, ele declara que o negócio não será fechado. “O chapéu não bate com a papelada e mesmo eu adorando a história eu não posso fazer nada com ele”, finaliza. Frustrado, o vendedor entende a justificativa e deixa o local.
Chapéu não foi dado por ex-presidente do Brasil, como vendedor afirmou
Após uma pesquisa ao acervo do Correio, o Centro de Documentação do Correio Braziliense (Cedoc), a história do vendedor ficou ainda mais cheia de furos. Ele afirmou ao administrador da loja de penhores que o chapéu foi dado por um ex-presidente do Brasil, mas, na verdade, o item foi dado por crianças que estudavam na Embaixada Americana e conheceram Reagan durante a visita dele no local.
A informação foi dada ainda na capa da edição, um pouco abaixo da foto recortada e mostrada, isoladamente, ao vendedor. “Na embaixada, o chapéu de Otávio Lage”, traz a chamada da notícia que conta sobre uma recepção que terminou “bem ao jeito brasileiro, uma festa onde não faltaram a descontração e o bom humor”.
Depois de falar com trabalhadores da embaixada e alunos que estudavam ali, ele “acabou pondo na cabeça o chapéu do candidato derrotado do PDS ao governo de Goiás, Otávio Lage”. De acordo com o jornal, o presente foi dado “por duas crianças estudantes da Escola Americana”. Sem explicações sobre a conexão entre as crianças e o político que governou Goiás entre 1966 e 1971, o jornal classifica o presente como “inesperado”.
A carta de David enviada ao novo dono do chapéu e apresentada ao dono da loja de penhores diz que o “chapéu foi dado” ao presidente, mas não informa, de maneira alguma, que o objeto foi dado pelo ex-presidente do Brasil. Na época, João Figueiredo presidia o país ainda no período da ditadura militar.