Desde de muito nova, Paula Sampaio teve os estudos como foco e nunca se intimidou com os limites e as dificuldades que a vida trouxe. Muito pelo contrário, ela construiu uma trajetória de sucesso. Nascida em Ceilândia, foi bolsista em colégios particulares, formou-se em direito pela Universidade de Brasília (UnB), e fez mestrado na London School of Economics (LSE) e na University of Pennsylvania (UPenn). Com 32 anos, a jovem assumiu, no início de abril, a liderança de estratégia e inovação global da joalheria Pandora, na sua sede, em Copenhague, capital da Dinamarca. A empresa é a segunda maior produtora mundial de joias de baixo custo. E, no mesmo mês, também foi listada, pela revista Época Negócios, como uma das 100 mulheres da inovação. Antes de se mudar do país, Paula conversou sobre sua trajetória com o Correio.
Ela sempre teve um exemplo de força bem próximo. A mãe, dona Maria do Carmo. Nascida em Montes Claros (MG), Maria do Carmo precisou viver de favor na casa de uma família vizinha, após a morte da mãe, com a promessa de que a menina iria estudar. Em 1970, a família se mudou para Brasília e trouxe Maria. Porém, não permitiram que a garota estudasse e, por 18 anos, ela viveu em trabalho análogo à escravidão, cuidando das crianças da casa, em troca de comida e um teto para dormir.
Mas, Do Carmo queria sair daquela situação e ser dona da própria vida. Por meio de uma amiga, ela fez um curso de manicure e ganhou todo o material para começar. "Sai batendo nas portas de apartamentos aqui, no Plano Piloto. E foi a partir daí que comecei a ter minhas primeiras clientes. Aquele pouco dinheiro me deu coragem para sair da casa em que estava", conta. Fazendo as unhas das clientes e economizando muito, ela comprou a casa própria no Setor O, em Ceilândia.
Aos 43 anos, Do Carmo descobriu que estava grávida da Paula. Portadora da doença de Chagas, ela nunca quis ser mãe." Eu tinha medo de morrer e acontecer com meu filho o que aconteceu comigo, e eu falava para Deus: 'Se for para me levar, espera a Paula ter pelo menos 12 anos e conseguir se defender'", recorda. Na região onde nasceu, em Minas Gerais, grande parte da família morreu por causa da doença e, por isso, Do Carmo acreditava que teria o mesmo destino.
Um tempo depois, a então manicure abriu o próprio salão, mesma época em que Paula nasceu. A menina foi criada vendo cortes de cabelo e o trabalho árduo da mãe, que até hoje, aos 74, cuida das madeixas das clientes da 504 Sul. Paula sempre ouviu a mãe dizer que ela deveria dar valor aos estudos e ser independente.
Logo no primário, a filha conseguiu bolsa no colégio de freiras Maria Auxiliadora, que aceitou a proposta de dona Maria de cortar o cabelo das freiras, em troca de uma bolsa de estudos para a filha. Até os dias de hoje, a cabeleireira presta serviço para as irmãs do colégio, agora em nome do laço afetivo que construíram ao longo dos anos.
"Eu falo que eu sou a prova do poder da educação na vida de uma pessoa. As mulheres, principalmente as pretas, costumam achar que aqueles espaços não pertencem a elas, e que não são merecedoras, principalmente porque ainda faltam muitos exemplos", avalia a agora executiva.
Solidão
Paula conta que se diferencia da realidade da maioria das mulheres pretas e periféricas devido à sua jornada solitária. "Principalmente no ambiente corporativo as pessoas viveram uma realidade diferente da minha, a grande maioria sempre teve um ambiente favorecido, uma família estruturada e fácil acesso à educação de qualidade. Na minha trajetória profissional, sempre fui uma das únicas pessoas pretas", relata.
A respeito da saudade da filha, dona Do Carmo se diz acostumada com esse sentimento. Segundo ela, desde de cedo Paula usou da liberdade que o ensino lhe deu para morar em outros lugares e conhecer o mundo. "Eu criei ela para o mundo e graças a Deus podemos conversar por vídeo chamada hoje em dia", pontua.
O orgulho da filha está estampado no rosto de dona Maria do Carmo, que se alegra e vê que a trajetória com Paula valeu a pena. "Eu fico muito feliz porque muitas vezes você se esforça por uma pessoa, mas ela não dá valor, isso não é o caso da Paula, o mérito é todo dela, ela se esforçou para vencer", destaca com admiração.
Planos para o futuro
Paula sabe que tem um papel muito importante diante da sociedade. "Eu estou abrindo espaço para outras pessoas, para que esse lugar que eu estou ocupando hoje seja um pouco menos solitário", ressalta. Quando voltar ao Brasil, ainda sem data específica, a jovem tem planos de entrar na política para que, assim como ela, outras pessoas consigam chegar longe, porém, com obstáculos menores. "Eu sempre tive um dever cívico de devolver para a sociedade todo o conhecimento que adquiri. Quero ver mulheres pretas em posições globais como a minha", explica.
"Eu quero ser uma agente de mudança dentro da periferia. Hoje as pessoas lá não se permitem sonhar, porque elas têm outras coisas com que se preocupar, como colocar comida no prato. É uma ousadia sonhar na periferia," avalia. "Quando eu conto minha história, as pessoas falam: 'Nossa, que esforço! Que conquista!' Mas eu penso: 'Olha minha trajetória, eu não tinha outra opção, esse era o único caminho que tinha para mudar a minha realidade'", conclui a jovem que voou para muito além do quadradinho.