Brasília sempre se reinventou, mas nunca se desgarrou do arcabouço urbano, para usar a palavra da moda, criado pelos fundadores e pelo time de artistas que levaram a humanidade para o concreto e transformaram a cidade em museu a céu aberto. É preciso, no entanto, lembrar sempre que a oferta generosa de espaço, linhas elegantes, verde abundante e obras de arte acessíveis não é coisa dada e para sempre garantida. Cinco nomes formam a base do aspecto urbano e plástico da cidade. Athos Bulcão, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Burle Marx, Marianne Peretti e Lelé, o João Filgueiras Lima, são espécies de pais fundadores de Brasília.
Para Eduardo Pierrotti Rossetti, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB), falar no legado desse quinteto ganhou outra dimensão após a pandemia e depois dos atos antidemocráticos do 8 de janeiro. "A mudança das perspectivas políticas do governo federal recoloca, no fundo, a cidade enquanto capital. Esse legado tem que ser pensado na sua carga simbólica de efeito nacional. Há uma espécie de incompreensão sobre Brasília, uma falta de interesse sobre a cidade, e nós temos que ter essa percepção de maneira tranquila, serena e continuada", diz. "Não podemos achar que isso é uma coisa dada, que todo mundo entendeu. Brasília é uma cidade muito complexa, tem um arcabouço complexo e sofisticado."
Proteger é verbo que precisa ser constantemente conjugado na cidade criada para ser o símbolo da modernidade nacional. "A cidade não seria um museu se não tivesse uma concepção de que é unitária. Ela tem uma unidade de concepção plástica que a faz diferente, mas está constantemente ameaçada", garante a historiadora de arte e pesquisadora Graça Ramos. "Essa é a grande diferença para qualquer outra grande cidade do mundo, essa perspectiva livre, mas isso está em constante ameaça. E a questão das escalas, a cada dia tem mais pressão para romper. Perdendo isso, a cidade se descaracteriza completamente e coloca em risco o título de patrimônio", ressalta.
O arquiteto Matheus Seco lembra que Lucio Costa é o começo de tudo. "É o cara que concebeu a cidade. São várias camadas de contribuição, é difícil resumir, mas acho que o mais importante é a criação de uma cidade moderna que seguiu os preceitos modernos da época, inclusive uma camada simbólica que é muito especial: ele pensou a cidade não só como moderna, mas como uma capital, com toda a simbologia que tem uma capital do país", explica Seco, um dos sócios do escritório Bloco Arquitetos. "Não só é uma cidade moderna, mas uma cidade moderna que é a capital de um país que pretendia ser moderno. Simbolizava um salto que a gente almejava e ainda almeja ter. Esse é um legado, apesar da realidade que se impôs", complementa.
Acesse todas as reportagens do especial de 63 anos de Brasília
Ao diálogo entre o urbanismo de Lucio Costa e suas escalas e as linhas e o concreto de Oscar Niemeyer, acrescentam-se as intervenções de Marianne Peretti e Athos Bulcão, dois artistas que se tornaram uma constante nos espaços públicos e prédios oficiais da capital. "Athos conseguiu fazer a integração entre arte e arquitetura de maneira que é sempre surpreendente para quem está passando pela cidade. Não é uma integração exibida, é de uma delicadeza e inteligência muito grandes. E é inteligente, você é surpreendido por ele. Poucos artistas fazem esse diálogo de maneira tão equilibrada", diz Graça Ramos.
Se Athos fez dezenas de painéis de azulejo, madeira e outros materiais, espalhados por espaços que vão do Parque da Cidade aos salões nobres do Congresso Nacional, Peretti fez do teto da catedral e de áreas comuns do prédio que abriga o legislativo verdadeiros vislumbres lúdicos. Nos vitrais da Catedral e do Panteão da Pátria, na escultura na Câmara dos Deputados, a artista nascida em Paris, e criada em Pernambuco, propôs aos visitantes um olhar translúcido e abstrato para a arquitetura.
Nesse intercâmbio entre arte e arquitetura, não se pode deixar de fora o paisagismo de Burle Marx. Designer, escultor, pintor e até cantor, Burle Marx é um dos responsáveis por boa parte do visual do Parque da Cidade. "Ele não está presente nos primórdios da cidade, ele entra depois do fim do governo JK, mas o que fez é tão impressionante que, se tivesse sido reproduzido nas outras entrequadras da cidade, elas teriam outra perspectiva de beleza e outra qualidade de vida. Porque o resultado é maravilhoso, tanto para o que ele escolhe para paisagismo, quanto para o mobiliário urbano", acredita Graça Ramos.
O museu a céu aberto é capitaneado, sobretudo, pela enorme concentração de prédios históricos que são hoje referências arquitetônicas para o mundo inteiro. Essa concentração — e não apenas o fato de serem exemplares icônicos do modernismo — é um dos grandes legados de Oscar Niemeyer. "Dentro desse legado do arcabouço urbano de Lucio Costa existe um legado arquitetônico de Oscar Niemeyer e de múltiplas escalas de valor histórico. O legado dele precisa ser considerado dentro desse arcabouço urbano. E acho que o Niemeyer deixa outro tipo de legado para a cidade, que é pensarmos a quantidade de obras de arquitetura em uma cidade do mesmo arquiteto. Isso implica um estudar constante da obra dele, uma obra complexa, multifacetada e muito mais plural do que a gente considera", diz Rossetti.
Muitos outros arquitetos, alguns da equipe de Niemeyer ou herdeiros das ideias modernista que nortearam a construção da cidade, continuaram a projetar no Plano Piloto, mas João FIlgueiras Lima, o Lelé, está entre os mais celebrados e cujo legado vai para além das formas arquitetônicas. Boa parte de seus projetos priorizam a funcionalidade e a eficiência, com soluções sustentáveis e acessíveis para a população de baixa renda. "Ele tinha uma cabeça de arquiteto muito voltada para o processo construtivo, projetava de acordo com os meios disponíveis. Economicidade de obra, racionalidade de obra, aproveitamento de luz natural", explica Matheus Seco, cujo escritório está localizado no Edifício Morro Vermelho, projeto de Lelé. "Essa postura dele inspira a gente até hoje." Em Brasília, Lelé projetou as duas unidades do Hospital Sarah Kubitschek — uma na região central do Plano Piloto e outra no Lago Norte —, o Memorial Darcy Ribeiro, conhecido como Beijódromo; o Hospital Regional de Taguatinga e prédios residenciais na Colina e na 109 Sul, além do Edifício Camargo Corrêa, no Setor Comercial Sul.
Saiba Mais
- Cidades DF Aluna desaparece ao sair de escola no DF; roupa íntima é encontrada em matagal
- Cidades DF Jovem faz falso alarme, ameaça massacre em escola do DF e acaba preso
- Cidades DF Número de médicos é insuficiente para os 180 partos mensais do HUB
- Cidades DF Dono de academia da Asa Norte e funcionários são investigados por tortura
- Cidades DF Crise na pediatria do DF pode se agravar no inverno, alerta especialista
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.