Articulado, observador e metódico. O modus operandi do professor de teatro para atrair e abusar sexualmente de alunos era sempre o mesmo. Daniel Moreira dos Santos, 43 anos, usava do lado amigável e criava vínculo com os familiares das vítimas para cometer os estupros. No decorrer de quase 20 anos, pessoas que conviveram diretamente com o docente foram surpreendidas com uma personalidade oculta do artista. Lado esse revelado por quatro ex-alunos de Daniel, que decidiram contar os fatos em detalhes em entrevista concedida ao Correio. O professor foi preso pela Polícia Civil (PCDF) por mais uma nova acusação e permanece detido.
Formado desde 2010 em artes cênicas pela Universidade de Brasília (UnB), Daniel adquiriu experiência na área de artes, com ênfase em educação artística. Oito anos antes de concluir o curso superior, o professor fundou a companhia de teatro “Barcaça dos Beltranos”, um grupo instituído em Santa Maria e que logo ganharia destaque em todo o DF. Depois de graduado, Daniel começou a dar aulas de artes em escolas particulares. Foram ao menos quatro instituições de ensino de Santa Maria, do Gama e de Taguatinga.
Em cada sala de aula que passava, Daniel fazia questão de divulgar e apresentar o grupo Barcaça dos Beltranos. A ideia era recrutar alunos para integrar a companhia. A preferência eram adolescentes, de 12 a 14 anos, especialmente meninos. Fernando (*) tinha 13 anos na época em que recebeu um convite do professor pelo Orkut para integrar o grupo. Não era o sonho de Fernando atuar, mas ele aproveitou a oportunidade. “Entrei em 2007 e fiquei por dois anos no Barcaça. Quando saí, a gente ainda manteve um certo contato. Ele me procurava por mensagem, mas só em 2014 a minha ficha caiu”, conta.
Fernando, hoje aos 29 anos, participava de todos os ensaios do grupo, que ocorriam aos sábados pela manhã no Serviço Social da Indústria (Sesi) de Taguatinga. Inicialmente, quem o buscava eram os pais, mas logo Daniel se ofereceu para levar o menino até em casa, em Santa Maria. “Ele estabelecia amizades com os pais dos alunos que ele tinha interesse. Dava presentes para as mães, oferecia carona. Era como um pai, então o pessoal gostava dele e jamais imaginava o pior. Nem a minha mãe desconfiou”, desabafa.
Modo de agir
Observador, Daniel estudava bem as vítimas antes de se aproximar. A preferência era por meninos que moravam apenas com a mãe. Com a confiança da familiar, o professor ganhava a liberdade em oferecer caronas ou levar os adolescentes para a casa com a desculpa de assistir filmes, comer pizza ou jogar videogame. Era sempre um pretexto.
Não demorou muito para que Fernando começasse a frequentar a casa de Daniel. “Minha mãe deixava. Estávamos em uma época difícil lá em casa. Meu pai era alcoólatra, então comecei a ter uma rotina em que toda sexta-feira eu dormia na casa do Daniel para ir ao ensaio no sábado pela manhã”, relata.
Foram nessas oportunidades que o professor praticava os abusos. Fernando conta que Daniel criava uma espécie de “cenário acolhedor” para manipular a vítima. “Ele buscava alguma vulnerabilidade, fosse ela estética ou outra coisa, e usava disso para abusar. No meu caso, eu desabafei a ele que me sentia pequeno para a minha idade em questão de estatura”.
Era aí que o professor entrava em ação com a desculpa de que “se eles fizessem de frente”, a vítima cresceria tanto no teatro quanto na vida. O “fazer de frente” era se esfregar com os adolescentes. Segundo Daniel, algumas vezes foi com roupa. Mas, em uma, o professor pediu para que ele tirasse as vestimentas e, em outra ocasião, mandou o aluno reproduzir o ato com outro adolescente no quarto dele. Seria uma forma de “tirar a vergonha” e até “ajudar” nas encenações.
Mais de uma vez, o professor também fez sexo oral em Fernando, denuncia ele. “Me sentia convencido daquilo. Um adolescente de 13 anos, quando ordenado por um homem de quase 30, acha que está fazendo o certo”, afirma.
Mas só em 2016, depois de conversar com outros ex-alunos e saber que não tinha sido a única vítima, Fernando e mais dois jovens resolveram levar o caso à polícia. Daniel foi alvo de um inquérito policial, que acabou arquivado na Justiça sob o argumento de ausência de lastro probatório mínimo, mesmo com os depoimentos prestados pelos garotos. “Foi um baque. Fiz terapia por anos para trabalhar isso em mim. No início, a gente (vítima) sempre se culpa”.
Os bastidores
O comportamento autoritário e abusivo de Daniel era notado por quase todos. Maiara Naiza Oliveira, 33, é uma das primeiras integrantes do Barcaça dos Beltranos. Ela entrou no grupo aos 16 anos, quando estava no ensino médio. Passou por várias oficinas e cursos até poder, finalmente, se apresentar em um espetáculo. Era um sonho que se tornava real.
Mas a maneira de agir de Daniel não passava despercebido pelo grupo. “Ele sempre falava: 'Fica aqui quem quer. Eu sou o dono dessa porra'. Sofri um abuso psicológico extremo, ao ponto dele me chamar de burra e dizer que eu não dava conta, que eu era vazia”, diz.
Apesar da polêmica que ligou o professor a casos de estupro em 2016, o grupo seguiu firme. Mas havia algo estranho. “Era difícil entender o porquê dos alunos, depois de ensaiarem tanto, se apresentarem, saíam do Barcaça de vez. Sem nenhum motivo aparente, sem nenhuma explicação”, conta. Em 2016, o próprio Daniel ligou para Maiara “se justificando” sobre as denúncias. Ele alegou à época que uma companhia teatral rival tentava o derrubar e o desmoralizar.
João Fabrício de Lima, 26, conheceu Daniel em 2018, aos 21 anos, quando entrou na Companhia. O barbeiro relembra que os ensaios eram sempre muito regrados e o professor se demonstrava uma pessoa disciplinada e metódica. João permaneceu por menos de um ano no grupo e recebeu um convite no final de 2019 para formar o elenco de uma peça, mas os relatos contados por amigos o incomodavam. “Com várias alunas ele fazia comentários exagerados. Chamando de gata, por exemplo. Isso as deixava constrangida. Era nítido”, relata.
O publicitário Dielson Albuquerque, 26, entrou no grupo em 2016 e presenciou atitudes estranhas do professor. Numa delas, soube de um amigo próximo que Daniel havia começado a namorar um aluno, de 11 anos, de uma escola particular. O garoto, também vítima, se mudou cerca de 10 anos depois para São Paulo e sumiu de todas as redes sociais. “Percebemos várias conversas de cunho sexual entre ele e os alunos. Falando de masturbação e outras coisas. Aqueles assuntos eram totalmente inapropriados para crianças”, conta.
Dielson também foi um dos integrantes do grupo que recebeu a ligação de Daniel após a acusação de estupro de 2016. “Dali em diante, a minha ficha caiu e tudo que eu imaginava começou a fazer sentido, como uma das vezes que ele ficou no local do ensaio com três adolescentes, enquanto o normal era ficar do lado de fora esperando os pais desses meninos irem buscar eles.”
Maiara, João e Dielson tiveram os sonhos de atuar interrompidos e seguem em profissões distintas do meio artístico, mas não perderam a esperança. “Temos um projeto e queremos fazer dele o motivo de resiliência. Ir para o palco e mostrarmos que realmente somos bons”, finaliza Maiara.
Daniel segue preso preventivamente desde 24 de março. A reportagem não localizou a defesa dele. O espaço segue aberto para manifestações.
(*) Nome fictício da vítima, que pediu para ter identidade preservada