Jornal Correio Braziliense

Etarismo

Idosos do Distrito Federal mostram que idade não passa de um número

O DF tem mais de 356 mil idosos, segundo o Instituto de Pesquisa e Estatística (IPEDF). Muitos deles ainda vivem rotinas de trabalho e sofrem preconceitos diários por conta do ano que consta na certidão de nascimento

Tempos atrás, acreditava-se que alcançar os 60 anos era sinônimo de velhice e aposentadoria. Hoje, é cada vez mais comum conhecer pessoas dessas idades começando a trilhar novos caminhos e ativas no mercado de trabalho. De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) mais recente, realizada pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF), dos mais de 356 mil idosos que moram na capital do país, 39,3% têm como trabalho principal, o serviço autônomo (confira o infográfico).

Apesar disso, o preconceito ainda é uma pedra no meio do caminho. Professora associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do grupo de trabalho Envelhecimento Saudável e Participativo (DASU/UnB), Leides Barroso Azevedo Moura afirma que, no DF, existem poucas iniciativas de institutos e ONGs que trabalham no sentido de incluir pessoas idosas no mercado de trabalho e estruturar os projetos de vida e anseios da população envelhescente. "É necessária uma transformação na cultura das instituições a fim de acolher a potência da diversidade geracional no mundo do trabalho e ampliar as oportunidades de aprendizado e diálogo entre as gerações", acredita Leides Barroso (leia mais em Artigo).

A empresária Maria Aparecida, 63, mais conhecida como Cida Teles, é dona de uma conveniência há nove anos e conta que o preconceito faz parte de sua dose diária de trabalho. "É constante. Passo diversos constrangimentos no ambiente de trabalho. O maior deles é por parte dos entregadores que, quando vêem que sou eu que irei verificar as mercadorias, ficam irritados com a minha demora para ler as letras pequenininhas ou o meu cuidado mesmo em ir mais devagar com a checagem". A mineira diz que em diversos momentos se sentiu invisível por conta da idade, já que clientes e pessoas a ignoravam muitas vezes e, assim, nasceu a vontade de pintar o cabelo. "Às vezes digo que uso essa cor de cabelo (preto) para não me transformar em uma idosa transparente. Esse preconceito é real e existe muito comigo".

Com a quantidade de atritos que teve dentro da conveniência, Cida pendurou uma placa escrito "Sua paciência é a minha eficiência". "Tantos clientes vêm aqui apressados e ficam me pressionando para fazer as coisas rapidamente, que fico nervosa, sabe? Dá um bloqueio total. Então pendurei isso pensando em transmitir essa mensagem para eles", relata. A moradora do Lago Norte, reforça que, além do trabalho, muitas pessoas ficam impressionadas quando veem que ela é bem ativa e não corresponde à imagem de 'vovozinha'.

Para lidar com a rejeição, Cida costuma se olhar diariamente no espelho e reflete sobre a vida. "Eu me aceito por inteiro, respeito o meu tempo e a minha vida. Não estou procurando parecer mais nova para evitar o preconceito e penso em como eu estou vencendo todos os dias''. E carrega com ela diariamente a frase de Guimarães Rosa, que diz "O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem". Para ela, essa é a forma de lidar com o preconceito: com muita coragem e respeitando a própria história.

Pavor do envelhecimento

Antropóloga, professora e pesquisadora há mais de três décadas sobre envelhecimento e felicidade, Mirian Goldenberg explica que o "etarismo", "idadismo "ou "velhofobia" — como ela prefere chamar — é a violência (física, verbal, e psicológica) ou a discriminação em relação à idade. "Esse último termo é por conta da minha preocupação maior com as pessoas mais velhas, incluindo o pânico existente na cultura brasileira, que valoriza extremamente a juventude, a associando à beleza, produtividade, atividade e sensualidade", comenta a especialista.

editoria de arte - idosos

De acordo com Goldenberg, independentemente do termo utilizado, o importante é denunciar qualquer tipo de violência, abuso e maus tratos que existem dentro das nossas casas contra os mais velhos. "Mais de 50% da violência praticada contra os idosos parte dos próprios filhos(as) e 10% por netos(as)", alerta a pesquisadora. Para ela, o principal motivo para o etarismo existir na cultura brasileira está atrelado à forma como enxergamos a velhice. "Ela é encarada quase como uma doença. No auge da pandemia, inclusive, vimos autoridades dizendo que a covid era algo 'só de velhos' e que só eles deveriam ficar em casa", recorda.

"Esse tipo de atitude faz com que a gente tenha pavor do envelhecimento e, ao mesmo tempo, cria discriminação com pessoas mais velhas", avalia a professora. "Só que a nossa pirâmide etária está se invertendo: temos, a cada dia que passa, a população idosa crescendo, enquanto os mais jovens estão diminuindo", pondera a pesquisadora, lembrando que, se não mudar essa realidade de preconceito, os mais novos de hoje serão os velhos de amanhã. "E eles que passarão a sofrer as mesmas situações de violência e abuso que seus pais e avós estão vivendo atualmente", ressalta.

"Vida após os 60"

Em 2020, a empresária Flávia Pires, 67, começou a desenvolver um aplicativo para cuidadores de idosos. O Tech Care Dia a Dia foi idealizado para cuidar de sua mãe e busca reduzir riscos nos cumprimentos de rotinas diárias, de pessoas que precisam de acompanhamento constante. "Quando descobrem que eu abri meu negócio na idade que tenho, as pessoas têm um certo descrédito, sabe? Senti uma grande invisibilidade, como se não fosse possível eu abrir um negócio por ser aposentada".

Em diversos momentos, ela sentiu a obrigação de se impor para ser respeitada no mundo tecnológico. "Já ouvi coisas como 'o mundo agora é nosso' e 'vai fazer crochê'. Nunca deixei isso me abalar, porque não tem limite para ir atrás de um sonho e aprender coisas novas". Para ela, a nova geração acredita que sabe de tudo e por isso tende a esnobar os ensinamentos passados por idosos. "Eles acham que não podemos fazer coisas novas e agem como se estivéssemos tomando o lugar deles. E eu sinto que  tenho tanta coisa para aprender, estou só no início", destaca.

"Virou uma cultura onde o belo é sinônimo para jovem, como se não existisse velhice e como se o mundo tivesse começado agora. Fiquei horrorizada com o caso recente da mulher de 40 anos que foi hostilizada na faculdade e eu me vi naquilo, sabe? Já passei por tanta zombaria e carinhas para cima de mim como se eu já não pudesse ser mais nada além de velha. E esse não é o lugar que eu quero ocupar", disse. "As pessoas precisam entender que existe, sim, uma vida enorme após os 60 anos além de muita coisa a ser vivida", complementa.

Carlos Vieira - Maria Aparecida: "Passo diversos constrangimentos no ambiente de trabalho"

Mirian Goldenberg acredita que a melhor forma de abolir o preconceito contra as pessoas mais velhas é repetindo, incansavelmente, o que ela tem quase como um mantra: o jovem de hoje é o velho de amanhã. "Se não tivermos a consciência de que essa violência/discriminação atinge a todos nós, nunca vamos mudar", observa. "Então, tem que partir do nosso cotidiano, é dentro das nossas casas, famílias, escolas e trabalhos, que a nossa postura em relação ao envelhecimento precisa ser alterada", destaca a especialista.

Mudando estereótipos

O Idadismo no mundo do trabalho, uma das formas de precarização das condições do trabalho pela quebra de laços interpessoais e da solidariedade intergeracional, produz impactos negativos tanto em jovens quanto em pessoas idosas. Em relação aos mais novos, os estudos descrevem que eles lidam com percepções estereotipadas nas relações horizontais e verticais com colegas e gestores que os consideram "menos motivados", "menos envolvidos", "preocupados em realizar seus próprios projetos", "não dedicados ao trabalho", "jovens e, portanto, mais preguiçosos e menos organizados". Já as pessoas idosas são percebidas como "menos atualizadas", "mais resistentes a mudanças", "com menor capacidade de adaptação", "com limitações nas capacidades físicas", "com competência reduzida para uso das ferramentas tecnológicas" e tantos outros estereótipos baseados na percepção da velhice como perda e incapacidades de uma economia neoliberal, que expande cada vez mais a sua força produtiva de trabalho.

Esses estereótipos fertilizam ações discriminatórias por parte de pessoas e estruturas. As pessoas que sofrem essas discriminações relatam sofrimentos, ansiedade em realizar o trabalho, redução da satisfação e do engajamento, limitação da criatividade e da performance. O idadismo no mundo do trabalho precisa ser compreendido como um conjunto de estereótipos, preconceitos e discriminações que organiza as relações entre as gerações e reforça ou perpetua valores negativos que tendem a generalizar as "juventudes" e as "velhices" ao limitar as capacidades e potencialidades das pessoas.

Mudar essa narrativa requer uma compreensão da responsabilidade individual e institucional de combate ao idadismo no cotidiano do trabalho e a prioridade em alterar a maneira como "pensamos, sentimos e agimos" sobre jovens e idosos. É necessária uma transformação na cultura das instituições a fim de acolher a potência da diversidade geracional no mundo do trabalho e ampliar as oportunidades de aprendizado e diálogo entre as gerações. A adoção de uma política inclusiva no cotidiano do trabalho promove uma comunicação de valores que celebra a diversidade geracional. O idadismo no trabalho pode escalonar para crime de assédio moral. Uma educação anti-idadista, antirracista e baseada em outras intersecionalidades é prioridade para promover a saúde mental do trabalhador e a defesa dos seus direitos.

Leides Barroso Azevedo Moura, professora Associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do GT Envelhecimento Saudável e Participativo (DASU/UnB)

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Carlos Vieira - Maria Aparecida: "Passo diversos constrangimentos no ambiente de trabalho"
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Mudando estereótipos

O Idadismo no mundo do trabalho, uma das formas de precarização das condições do trabalho pela quebra de laços interpessoais e da solidariedade intergeracional, produz impactos negativos tanto em jovens quanto em pessoas idosas. Em relação aos mais novos, os estudos descrevem que eles lidam com percepções estereotipadas nas relações horizontais e verticais com colegas e gestores que os consideram "menos motivados", "menos envolvidos", "preocupados em realizar seus próprios projetos", "não dedicados ao trabalho", "jovens e, portanto, mais preguiçosos e menos organizados". Já as pessoas idosas são percebidas como "menos atualizadas", "mais resistentes a mudanças", "com menor capacidade de adaptação", "com limitações nas capacidades físicas", "com competência reduzida para uso das ferramentas tecnológicas" e tantos outros estereótipos baseados na percepção da velhice como perda e incapacidades de uma economia neoliberal, que expande cada vez mais a sua força produtiva de trabalho.

Esses estereótipos fertilizam ações discriminatórias por parte de pessoas e estruturas. As pessoas que sofrem essas discriminações relatam sofrimentos, ansiedade em realizar o trabalho, redução da satisfação e do engajamento, limitação da criatividade e da performance. O idadismo no mundo do trabalho precisa ser compreendido como um conjunto de estereótipos, preconceitos e discriminações que organiza as relações entre as gerações e reforça ou perpetua valores negativos que tendem a generalizar as "juventudes" e as "velhices" ao limitar as capacidades e potencialidades das pessoas.

Mudar essa narrativa requer uma compreensão da responsabilidade individual e institucional de combate ao idadismo no cotidiano do trabalho e a prioridade em alterar a maneira como "pensamos, sentimos e agimos" sobre jovens e idosos. É necessária uma transformação na cultura das instituições a fim de acolher a potência da diversidade geracional no mundo do trabalho e ampliar as oportunidades de aprendizado e diálogo entre as gerações. A adoção de uma política inclusiva no cotidiano do trabalho promove uma comunicação de valores que celebra a diversidade geracional. O idadismo no trabalho pode escalonar para crime de assédio moral. Uma educação anti-idadista, antirracista e baseada em outras intersecionalidades é prioridade para promover a saúde mental do trabalhador e a defesa dos seus direitos.

Leides Barroso Azevedo Moura, professora Associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do GT Envelhecimento Saudável e Participativo (DASU/UnB)