O excesso de velocidade está entre as principais causas das mortes no trânsito. No Distrito Federal, 3.905 flagrantes de desrespeito ao limite são registrados diariamente, média de quase três por minuto. Entre as explicações para tantas infrações estão o desprezo pela segurança do outro; falta de educação para o trânsito; inexistência de uma política de segurança viária; e um fator estrutural: o traçado das ruas da capital estimula o mau condutor a pisar no acelerador.
Aos 67 anos, uma moradora de Ceilândia enterrou o filho quando ele tinha apenas 25. "É doído reconhecer que, se ele não estivesse correndo, poderia estar vivo hoje. Ah, se as pessoas soubessem que isso também pode acontecer com elas!", lamenta a entrevistada, que, a seu pedido, terá o nome dela e do rapaz preservados. O jovem morreu ao colidir o carro contra uma árvore, quando ia para o trabalho. Segundo a perícia, ele estava a pouco mais de 100km/h numa via onde a máxima permitida era 60km/h.
A má conduta dos motoristas em 2022 é ainda maior do que as estatísticas revelam. Os radares espalhados pelas vias sob a responsabilidade do Departamento de Trânsito (Detran-DF) foram trocados ano passado e muitas ruas deixaram de ser monitoradas no período. Além disso, está excluído da estatística quem acelera acima do limite permitido, expondo terceiros a risco, e freia antes do equipamento eletrônico. Presidente do Instituto de Segurança no Trânsito (IST), David Duarte Lima lembra que a velocidade é energia cinética. "Toda vez que você dobra a velocidade, a violência da colisão é multiplicada por quatro", garante.
Desenho das ruas
Especialistas em mobilidade segura e sustentável concordam que, no Distrito Federal, a concepção da cidade, desenhada no auge da aceleração da indústria automobilística do país, estimula o condutor a pisar no acelerador. No entanto, o privilégio para veículos motorizados deixou de fazer sentido na vida moderna e o conceito precisa ser revisto. "É preciso repensar, por exemplo, uma rodovia como o Eixão cortando a cidade, pois ele representa uma exposição grave da população aos riscos. Chegamos ao ponto de vias engarrafadas serem mais seguras do que as livres", pondera o promotor Dênio Augusto de Oliveira Moura, coordenador da Rede Urbanidade e promotor de justiça da 1ª Promotoria de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística (Prourb). Para ele, a concepção rodoviarista, que privilegia os deslocamentos motorizados individuais em detrimento do transporte público de massa, dos ciclistas e pedestres, é replicada por todo o DF. "Já evoluímos em termos de redução de mortos e feridos, mas os números seguem inaceitáveis. Nosso lema, inspirado no que a Suécia vem fazendo, é: nenhum óbito no trânsito é aceitável", defende.
Ronaldo Rodrigues Cotrim tem 33 anos, é pintor e morador da Estrutural. A crise financeira o obrigou a vender o carro e, agora, ele só anda de bicicleta. São 25 km entre a cidade onde vive e o local de trabalho. Trajeto que ele demora meia hora para percorrer, com insegurança entre carros, ônibus e caminhões em alta velocidade. Contrariando a orientação de especialistas, Ronaldo trafega no sentido oposto ao dos veículos. "Porque, se perceber algum risco de acidente, me jogo da pista para o meio do mato", justifica. Questionado sobre que tipo de medida pode deixar o trajeto mais seguro para ciclistas, ele é objetivo: uma ciclovia.
Impor limites
Na avaliação do coordenador da Rede Urbanidade, todas as ações para ampliar a segurança no ir e vir dos cidadãos devem vir acompanhadas da revitalização das passagens subterrâneas do Eixão. Também é preciso que as vias, os viadutos e as pontes que estejam em construção, ou apenas na fase de projetos, tenham espaços também para pedestres e ciclistas. Ele cita como um mal exemplo o viaduto do Sudoeste e o Trevo de Triagem Norte "pensados praticamente só para carros". "No caso da saída Norte, lá pelas tantas, tentaram adaptar uma ciclovia para quem está passeando, as curvas são interessantes. Mas para quem usa a bicicleta para trabalhar, é inviável porque torna o caminho mais longo. Sem falar as interseções com as pistas. Outra área bastante sensível é aquela via de acesso à Ponte JK. As pessoas têm que ser quase atletas para atravessar, e ainda colocaram uma mureta para elas pularem. São muitos trabalhadores na região. Essas situações são impensáveis no mundo de hoje", critica Dênio Moura.
Outro exemplo clássico dos arremedos de projetos cicloviários está na cara do poder, ao longo do Eixo Monumental. A pista destinada aos ciclistas simplesmente desaparece quando ele chega à Rodoviária do Plano Piloto e, reaparece do outro lado, juntamente em uma região com fluxo intenso de veículos durante todo o dia. Além disso, o terminal de ônibus até hoje não possui bicicletário, além de ter problemas de iluminação e de acessibilidade. Segundo Dênio Moura, no ano passado foi realizada uma audiência pública e o GDF ganhou prazo para apresentar um projeto que solucione essas questões. "Nosso foco é virar a chave em relação à prioridade que se dá ao automóvel na cidade, para que possamos, realmente, olhar para o transporte coletivo, para a mobilidade ativa e fazer uma cidade mais amistosa para todos. O MPDFT atua dentro das suas prerrogativas. Precisamos de aliados da sociedade civil organizada, principalmente, de quem tem expertise, experiência e sabe o que é bom pra cidade. Garantir que a população seja ouvida e atendida nas suas reivindicações", conclui o promotor.
A requalificação dos espaços urbanos, segundo especialistas, passa pela criação de zonas onde o limite de velocidade é de até 30km/h; promovendo o estreitamento de vias com projetos de jardinagens; criando calçadões, construindo ciclovias e calçadas. Essas são algumas das transformações do espaço público comprovadamente eficazes para tornar o trânsito mais humano e seguro. Diretor-geral do Detran-DF, Marcelo Rodrigues Portela afirma que a autarquia está atenta à sinalização e manutenção viária. Os projetos de segurança preveem a implementação de elementos que auxiliam na diminuição e manutenção da velocidade regulamentada e com a intervenção pontual em alguns trechos de maiores índices de acidentes.
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ENTREVISTA
Marcelo Portela, diretor-geral do Detran-DF
Quais são as políticas do Detran para reduzir a velocidade excessiva na capital e, consequentemente, o número de vítimas mortas e feridas?
A sinalização adequada auxilia na manutenção da velocidade e consequentemente da segurança da via, através do respeito por parte dos diferentes usuários da via. Os projetos de segurança viária elaborados pela Diretoria de Engenharia de Trânsito buscam a segurança de todos os usuários do trânsito, seja com a implementação de elementos que auxiliam na diminuição e manutenção da velocidade regulamentada, seja com a intervenção pontual em alguns trechos de maiores índices de acidentes. O Detran também tem um trabalho intenso de ações de fiscalização, com a presença ostensiva de agentes de trânsito em pontos estratégicos do DF para fazer com que os condutores respeitem a sinalização. As ações de Educação não podem ficar de fora dessa política de segurança viária, pois a conscientização das pessoas é fundamental para que todos possam zelar pela segurança um dos outros na via pública.
O DF deu início à implantação das Zonas 30. Quantas são no DF, onde ficam? Existe plano para ampliar esse projeto? Se sim, para quais áreas?
As Zonas 30 são áreas onde se reduz a velocidade do veículo visando principalmente a segurança de pedestres. Em 2020, foi implantada na via principal interna da UnB (que liga o CA de artes ao RU) com apoio do Detran. Também há sinalização indicando a Zona 30 na área do Setor Hospitalar Sul, do Setor de Rádio e TV Sul e do Setor Comercial Sul, coordenadas pela Semob. E há um estudo sendo realizado nas vias principais de Ceilândia, por se tratar de uma região que estatisticamente ocorreram atropelamentos, além de ser uma cidade de grande circulação de pedestres e de grande extensão.
Quais são os projetos do Detran para conscientizar os condutores, de uma vez por toda, sobre os riscos do desrespeito ao limite de velocidade?
O Detran realiza ações de educação para os mais variados públicos. Nossas equipes da Diretoria de Educação vão às escolas para conscientizar crianças sobre a forma correta de circular na via e usar a faixa de pedestre, por exemplo. Estamos também diretamente nas ruas, mostrando como o pedestre e o ciclista devem se comportar. Um exemplo é o programa Café na Faixa e o Bike em dia, duas ações muito bem recebidas pela população. Essas ações também são realizadas com os condutores para conscientizá-los sobre o respeito à sinalização e o cuidado com os mais frágeis. Sem esquecer das campanhas educativas trabalhadas por meio da publicidade, alertando sobre os riscos de acidentes por esse fator. Por fim, cabe destacar que todo o esforço do Detran fez com que o Distrito Federal fosse um dos poucos entes da federação a conseguir atingir a meta estipulada pela ONU na redução de mortes no trânsito na primeira década de ações para a segurança viária. Esse resultado muito nos orgulha e nos dá motivação para trabalhar cada vez mais na preservação da vida a na qualidade dos serviços prestados à população do Distrito Federal.
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Ter paciência na via para não se tornar paciente no hospital
Hartmut Günther, Professor de Psicologia Ambiental e do Trânsito, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, da Universidade de Brasília (UnB)
Ao ser convidado para escrever sobre velocidade e trânsito, o primeiro termo que me ocorreu foi serenidade. Pensando nos inúmeros fatores responsáveis pelos sinistros no trânsito – álcool, velocidade, tipo de veículo e a sua manutenção, qualidade da via, qualidade (eficácia) da fiscalização, nível de educação para o trânsito, para mencionar apenas alguns – a falta de serenidade, isto é, a falta de paciência sem a qual não conseguimos lidar com a nossa vida cotidiana parece-me subjacente a muitos conflitos, entre os quais um sinistro de trânsito se apresenta como uma explosão com consequências mais graves e mais visíveis.
Pensando num dos principais fatores que contribuem para os sinistros no trânsito, excesso de velocidade, impetuosidade, a falta de paciência parece estar na raiz do problema.
Então, o que podemos fazer? Consideremos alguns exemplos: Falta de paciência diante das múltiplas demandas cotidianas.
- O motoboy que tem de entregar a mercadoria em tempo para não perder esta e futuras corridas. Mudar as regras do trabalho dos entregadores, o tempo e a frequência de entregas faria a vida do entregador mais tranquila e segura.
- As múltiplas e muitas vezes concorrentes demandas que precisam ser realizadas quase ao mesmo tempo, e fazem com que corramos cada vez mais, negligenciando nossa segurança e a dos outros. Será que, de fato, menos não seria mais – mais segurança, mais tranquilidade, mais vida?
Além das demandas externas que fazem com que as pessoas corram, precisamos lidar com fatores que favorecem a velocidade: a via que convida para correr por ser larga, plana, mal fiscalizada; os limites de velocidade que favorecem a comodidade e impaciência de alguns motoristas às custas dos inúmeros demais participantes do trânsito: crianças, jovens, pais com crianças, idosos, pessoas com desafios de locomoção, os que preferem andar a pé ou de bicicleta por saber que esta maneira de locomoção é mais econômico e saudável – caso não seja colocado em risco pelos motoristas incautos. Esta situação de conflito entre motoristas e demais cidadãos dificilmente pode ser considerada cidadania plena para todas e todos.
Em suma: Coletivamente, precisamos de regras de convivência que nos incentivem, que nos obriguem a agir de maneira civilizada e respeitosa para com os outros. Individualmente, devemos ter paciência na via, ao invés de sermos pacientes num hospital.
Participação popular e mobilidade sustentável
A Rede Urbanidade é uma iniciativa do MPDFT, por intermédio da Promotoria de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística (Prourb), em parceria com a sociedade civil organizada, que tem por objetivo geral promover a mobilidade sustentável e o transporte coletivo no Distrito Federal.
Entre os objetivos da Rede estão: manter espaço democrático de discussão, articulação e busca de soluções conjuntas para as questões relacionadas à mobilidade urbana do DF; assegurar, de fato, a participação da sociedade no processo de planejamento, fiscalização e avaliação da política local de mobilidade urbana; e zelar pelo respeito aos direitos e garantias relacionados à mobilidade urbana.
Numeralha
1.625.717 é o número de multas por excesso de velocidade em 2021
1.425.395 infrações foram flagradas em 2022
3.905 é a média diária de multa ano passado