Violência doméstica

70% das vítimas não denunciam agressão, diz presidente de comissão da OAB-DF

Ao Podcast do Correio, Cristina Tubino, Comissão de Enfrentamento da Violência Doméstica da OAB-DF, o Distrito Federal é a unidade federativa que menos concede medidas protetivas às mulheres vítimas de violência

Pablo Giovanni
postado em 17/02/2023 06:00
 (crédito: Mariana Lins )
(crédito: Mariana Lins )

Os casos de feminicídio na capital federal deixam a população perplexa e chocada com o nível de violência no Distrito Federal. O Podcast do Correio recebeu a presidente da Comissão de Enfrentamento da Violência Doméstica da Ordem dos Advogados do Brasil, da Seccional do Distrito Federal (OAB-DF), Cristina Tubino, para analisar a escalada de violência contra as mulheres. Às jornalistas Adriana Bernardes e Sibele Negromonte, a advogada citou que o DF é o estado que menos concede medidas protetivas às mulheres vítimas de violência. A defensora afirmou que existem vítimas de violência porque o Estado não presta apoio efetivo.

O ano de 2023 começou da pior maneira possível. Em 46 dias, são seis feminicídios. Nós nos perguntamos: o que está acontecendo?

Tem algumas coisas que a gente precisa falar a respeito, para chegar a uma tentativa de compreensão (sobre essa onda de violência). Primeiro, realmente temos um número de feminicídios, desde o início do ano, que extrapolou toda e qualquer previsão ou imaginação que a gente teria a respeito disso. Em termos comparativos, temos hoje seis feminicídios consumados registrados no DF. Se nós pegarmos a quantidade de dias desde o início do ano, isso dá mais ou menos um feminicídio por semana, fora os que temos notícias de tentativas de feminicídio. É um número que extrapola realmente as estatísticas dos anos anteriores. Vou dar um exemplo: em 2022, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF), seis feminicídios era a quantidade que nós tínhamos (até) em maio. Então, nesse período pequeno, a gente já chegou a um número que nós tínhamos em cinco meses no ano passado. Quanto à questão das notificações, a violência contra a mulher — não só o feminicídio no geral — é sempre um problema. Por quê? 70% de mulheres vítimas de tentativa de feminicídio, que é feminicídio não consumado, não registram ocorrência. 

Os homens estão exterminando mais as mulheres ou, hoje em dia, existe uma visibilidade nesses casos? O ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que a violência contra as mulheres vai ser combatida nesse governo. 

Acho que são as duas coisas. O crime de feminicídio só entrou na legislação em 2015. É muito recente. Antes de 2015 e no próprio ano, a morte de mulheres não era separada dos outros crimes de homicídio. Não tem como a gente saber como eram esses números. Os registros começam a ter início a partir de 2016. Eles não são muito acurados, porque têm estados que não fornecem números. Os critérios de registros de casos de feminicídio não são uniformizados. Por isso, o Ministério da Justiça também está com medidas para fazer um banco de dados para que a gente possa chegar a uma conclusão do porquê que está acontecendo e, a partir desse ponto, desenvolver políticas públicas. A gente precisa de uma integração maior. Mas, por outro lado, temos o problema que não é do Estado necessariamente, mas da criação cultural, dos valores e violência de gênero e de como é essa relação entre homens e mulheres. Falamos sobre homens e mulheres, porque a grande maioria dos casos de feminicídio ou de violências, são de relacionamentos heteroafetivos. Mas, precisamos lembrar que na aplicação da Lei Maria da Penha, podemos ter violência de mulheres contra mulheres. Seja na família, no ambiente doméstico, em relacionamento afetuoso. A única regra da lei é a vítima ser mulher. Biologicamente nascida mulher ou aquela que se percebe como mulher, que se vê como mulher. Então, nenhuma mulher é excluída. Era uma luta dos movimentos LGBTQIA quando o Judiciário ainda não tinha uma manifestação tão efetiva, por exemplo, travestis, mulheres trans, tivessem o direito à proteção da Lei Maria da Penha. Hoje já não temos essa discussão, porque os tribunais superiores têm essa perspectiva muito certa de que todas as mulheres devem ser protegidas.

O que precisamos mudar? Quais são os tipos de conduta que o Estado pode fazer para educar esse homem?

Essa tem sido uma grande discussão da força-tarefa que foi instalada (pelo GDF) aqui no Distrito Federal. Existe uma junção de várias secretarias, e isso é uma das grandes discussões que estão ocorrendo lá. Estou na força-tarefa representando a OAB, e (acho importante a gente parar um pouco de focar só na mulher). Vou dar um exemplo: quando falamos da Maria da Penha — que levou a criação da lei um pouco tempo depois — alguém sabe o nome do agressor dela? Não. Ninguém sabe o nome do agressor dela. Ninguém sabe que ele se chamava Marcos. Quando falamos do caso da Mariana Ferrer, que virou uma lei que estabelece regras de tratamento de vítimas e de testemunhas, alguém lembra o nome do agressor dela? Não, porque ninguém fala. A gente fala do quê? A gente fala da mulher. É a mulher. Assim, eu percebo que o jornalismo mudou muito a forma de abordar a violência contra a mulher de uma "maneira positiva". Era comum no passado a gente ver nas propagandas e nas campanhas, mulheres com olho roxo, sangue, acabrunhada, com medo. É importante focar na questão de quem agride. A própria Lei Maria da Penha, a poucos anos atrás, teve uma alteração de inclusão, como uma medida protetiva da mulher, a colocação de homens agressores em grupos reflexivos, além de acompanhamentos psicológicos, sejam individuais ou em grupo, para que esses homens possam se conscientizar, porque são novos valores. É mudar a perspectiva, a forma de ver aquela mulher. A mulher que não é o objeto. Ela não é uma posse, ela não é uma propriedade. Essa conscientização é extremamente importante.

No DF, esses grupos reflexivos são pontuais ou já têm uma abrangência que "possamos comemorar"?

Não é só o homem sair falando dizendo que "mudei". Temos que ver também em termos práticos. Existem muitas medidas protetivas sendo concedidas aqui no DF, apesar de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ter feito um levantamento dessas medidas nos últimos anos, e perceber que o DF é um dos que mais nega. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) é o que mais nega medidas protetivas, apesar de ter concedido mais de 16 mil nos últimos três, quatro anos. O que é a medida protetiva? Quando a mulher sofre uma violência, é uma medida que serve para imediatamente fazer parar aquela violência ou impedi-la que aconteça. Então, por exemplo, proibição de aproximação, proibição de contato, proibição de frequentar determinados locais, afastamento de agressor do lado, porque não adianta a mulher ir na delegacia fazer a ocorrência e voltar para casa com o seu agressor. É claro que a medida protetiva não vai resolver o problema. Ela é eficaz, mas ela não é a solução.

O que justifica tantas negativas da Justiça sobre medidas protetivas?

O procedimento das medidas protetivas funcionam assim: ou eu vou ter uma prisão em flagrante daquela pessoa agressora — seja por denúncia ou alguma outra forma — ou essa mulher, vítima, vai a delegacia fazer a ocorrência policial. Lá, ela narra a violência que está sofrendo e existe um questionário de avaliação de risco que ela preenche. O Judiciário vai analisar, porque existe uma pontuação para isso, com risco maior ou menor. Isso é levado em consideração para a concessão das medidas protetivas. Mas, pela Lei Maria da Penha e pelo que deveria ser, o que deve fundamentar a decisão de uma medida protetiva é a palavra da mulher. Por isso que, às vezes, há tantos homens que chegam revoltados, porque eles tomam conhecimento da medida protetiva já posta. A palavra da mulher, naquele momento, deveria ser o suficiente. É ela que está sofrendo e passando pela situação.

Como a mulher pode perceber que está sofrendo violência?

Às vezes a mulher percebe que é vítima de violência, mas ela tem vergonha de contar o que estava passando, de ser julgada. Ela tem vergonha de quem olha pra ela e fala assim: "Nossa, mas por que você aguentou isso tanto tempo?". Ela tem vergonha da família, dos conhecidos, dos parentes. Tem um outro fator: muitas dessas mulheres, ainda que a violência doméstica seja "altamente democrática". Porque se tem uma violência que é democrática, é a violência doméstica. É para mulher rica, para mulher pobre, é para mulher com doutorado, é para mulher analfabeta, é para mulher em situação de vulnerabilidade em situação de rua. Toda mulher pode ser vítima de violência doméstica. Isso é uma das coisas mais importantes para a gente dizer, para que essas mulheres saibam que elas podem buscar ajuda e não são só elas. Existe um sentimento de solitude. A mulher no primeiro momento, acha que é só ela e que ninguém passa por aquilo, "porque ninguém percebeu o que ela estava passando". E, tem uma outra questão também. Às vezes as mulheres têm uma dependência, que não é só emocional, afetiva. Ninguém casa achando que vai ser ruim ou que vai viver com o agressor ou que vai sofrer uma violência. Todos nós casamos e temos um relacionamento buscando a felicidade. As mulheres, em um primeiro momento, não se veem vítimas de violência, porque elas não admitem que aquilo esteja acontecendo. E tem uma dependência: a financeira. Essas mulheres, às vezes, não tem condições, não tem um apoio do Estado para poderem naquele período de readaptação, de se livrar do ciclo de violência, de poder se sustentar financeiramente. Vemos muitas mulheres vítimas de violência pedindo a revogação da protetiva. Sempre questionamos o porquê, e elas falam que não tem condições de manter os filhos sozinhas, não tenho como sustentar a casa, agressor fazendo pressão. São uma série de fatores.

Confira a íntegra da entrevista

 

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