O Distrito Federal está entre as 13 unidades federativas com maior taxa de feminicídio. Os dados, referentes a 2021, são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Com 1,6 caso de feminicídio a cada 100 mil habitantes, a capital do país está na sétima posição, junto com Maranhão, Rio Grande do Sul e Roraima. O índice é maior do que o quantitativo nacional, com 1,2 caso. De lá para cá, o quadro não amenizou. Somente nos primeiros 45 dias de 2023, seis brasilienses foram mortas. A última foi na manhã de segunda-feira, no Gama: Simone Sampaio Melo, de 40 anos, foi assassinada pelo ex-companheiro, João Alves Catarina Neto, 45.
O levantamento mostra que 1.341 mulheres foram exterminadas em todo o Brasil em 2021. De acordo com o anuário, esse alto número sugere uma falha do Estado quanto à garantia de eficácia às medidas protetivas de urgência, além de pontuar que a violência doméstica é progressiva, ou seja, tende a começar com agressões verbais, humilhações e constrangimentos, podendo evoluir para agressões físicas e até mesmo a morte. "Portanto, até chegar ao extremo de ser assassinada, a vítima muito provavelmente já passou por outros tipos de agressão e, em muitos casos, já buscou ajuda do Estado, o qual, por sua vez, mostrou-se incapaz de assegurar-lhe a devida proteção", destaca o documento.
Professor de direito do Centro de Ensino Unificado de Brasília (Ceub), Victor Quintiere aponta que a função dos governos federal e estadual não é somente repressiva diante daqueles que cometeram crimes, mas também de índole preventiva. Além das campanhas educativas, o especialista chama atenção para a estruturação da administração pública, em especial na segurança, fazendo com que órgãos relacionados possam agir com maior efetividade. "Por exemplo, aqui no DF, vivenciamos um cenário de alta demanda em que, muitas vezes, os órgãos não só da Segurança Pública, mas o próprio Poder Judiciário, acabam não conseguindo dar vazão suficiente para o devido tratamento e resposta a esse tipo de problema, que gera grandes consequências para toda a sociedade", exemplifica.
Proteção à mulher
Segundo o Relatório de Monitoramento dos Feminicídios no DF, da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF), em 2022, 18 mulheres foram vítimas dessa tragédia. Onze delas deixaram 33 órfãos, dois quais 27 eram menores de idade. O balanço indica que 17% das vítimas haviam registrado ocorrências anteriores de violência praticadas pelo mesmo autor e que, em 33% dos casos sem registro, há informações de testemunhas de agressões sofridas anteriormente e não registradas.
A pasta também produziu o Relatório de Monitoramento dos Feminicídios Tentados no DF, que mostra a ocorrência de 66 tentativas contra a vida feminina entre janeiro e dezembro de 2022, uma a menos que no ano anterior. O levantamento aponta também que, em 53% dos casos, a principal motivação foi ciúme e possessividade por parte dos parceiros. Do total de casos, 23 mulheres haviam registrado ocorrências, sendo que duas haviam feitos seis boletins e uma chegou a fazer 13 ocorrências, além de 20 requererem medidas protetivas de urgência.
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A advogada especializada em direito e gênero Mariana Nery ressalta que é de suma importância que as mulheres conheçam seus direitos para poder exigi-los. "Elas já se encontram em uma situação de vulnerabilidade perante a sociedade, uma vez que, por séculos, não tiveram nem mesmo seus direitos humanos reconhecidos. Uma mulher que desconhece os seus direitos está mais suscetível a acreditar nas palavras do seu abusador", pontua.
Para a especialista, é imprescindível que o Código Penal e o Código de Processo Penal sejam atualizados e tenham dispositivos que garantam a aplicação das novas leis que foram promulgadas para a defesa das mulheres. "Para garantir que as medidas protetivas não sejam quebradas e resultem na morte da vítima de violência doméstica, é preciso uma maior diligência da polícia e do Judiciário quando a mulher comunica ao Estado o descumprimento dessa medida por parte do abusador", avalia.
Também produzido pelo Fórum Brasileiro, o relatório Violência contra meninas e mulheres no primeiro semestre de 2022 mostra que o DF reduziu em 50% os casos de feminicídio no período em relação ao ano anterior. A capital do país foi a unidade federativa que mais apresentou queda, mas os primeiros 45 dias deste ano mostram um cenário assustador com seis ocorrências. O número já corresponde a 75% dos casos registrados na primeira metade do ano passado.
Segundo a Secretaria de Estado da Mulher do Distrito Federal, de 2015 para cá, aproximadamente 280 crianças ficaram órfãs do feminicídio. A estatística alarmante levou a governadora em exercício, Celina Leão, a criar uma força-tarefa para prevenir esse tipo de crime. Composto por nove secretarias do DF, o grupo vai atuar com medidas e campanhas de combate à violência contra a mulher e terá prazo de 45 dias para apresentação de relatório final, com as medidas a serem implementadas.
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Punição
Na esfera judicial, três acusados pelos crimes de feminicídio registrados em 2023 no DF já se tornaram réus. Maxwel Lucas Pereira de Oliveira, 32, acusado de assassinar a namorada Fernanda Letícia da Silva, 27; André Luiz Muniz dos Santos, 52, acusado de assassinar a esposa Mirian Nunes, 26; e Wellington Rodrigues Ferreira, 38, acusado de assassinar Giovana Camilly Evaristo Carvalho, 20. Os últimos dois crimes — um cometido contra Izabel Guimarães, 36, e o que vitimou Simone Sampaio, 40 — não chegaram ainda à esfera de apresentação da denúncia por parte do MPDFT. Os inquéritos ainda não foram concluídos pelas delegacias responsáveis. Já João Inácio dos Santos, 54, autor do feminicídio de Jeane Sena da Cunha Santos, 42, tirou a própria vida após o crime.
Colaborou Pablo Giovanni
Três perguntas para
THIAGO PIEROBOM — PROMOTOR DE JUSTIÇA DO MPDFT
De que forma a Justiça pode ser mais rígida e efetiva para reduzir os casos de violência contra a mulher?
Trabalhar com educação, com conscientização social, com maior presença de mulheres nos espaços de poder e de decisão é absolutamente essencial para desconstruir essa cultura machista e sexista que no fundo é a base da violência contra a mulher. Nesse sentido, por exemplo, o Tribunal de Justiça do DF, em parceria com diversas outras organizações, inclusive o MPDFT, tem um projeto chamado Maria da Penha vai à escola, que é um dos nossos carros-chefes nessa intervenção de política primária de conscientização social. Temos também as chamadas políticas de prevenção secundária, que são aquelas da área de saúde e assistência social, com a importância de capacitar esses profissionais para fazerem um diagnóstico precoce de casos que já sinalizam um risco mais acentuado de evoluírem para episódios de violência contra a mulher e de terem um protocolo articulado para engajar essas mulheres e esses homens em políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher. E, finalmente, nós temos também as chamadas políticas de prevenção terciária que, essas sim, tocam mais de perto com a atuação do sistema policial e do sistema de justiça. Essas medidas protetivas devem estar integradas com um conjunto de políticas públicas de prevenção.
E sobre a garantia da segurança aos órfãos do feminicídio?
Realmente, esse é um tema que nós precisamos avançar no Distrito Federal. Todo feminicídio não é apenas a morte de uma mulher, é a desgraça de uma família inteira. Familiares que passam a sofrer depressão, ansiedade e problemas de saúde mental. Os filhos dessas vítimas perdem o pai que, em regra geral, vai preso e, muitas vezes, perdem os irmãos, porque quando tem mais de um irmão, nem sempre algum familiar consegue receber todos ao mesmo tempo. Muitas vezes, a família toda continua com medo do ofensor, mesmo quando ele está preso e já foi condenado. Realmente temos um trabalho muito importante a ser feito com esses familiares das vítimas. Hoje, nós temos um programa chamado Pró-Vítima, da Secretaria de Justiça do Distrito Federa,l que tem como atribuição dar atenção aos familiares das vítimas de crimes graves e também das vítimas de feminicídio. Nós entendemos que é importante ampliar esse programa, criar protocolos para uma melhor articulação entre o sistema policial e o sistema de justiça, para que os familiares das vítimas sejam vistos não apenas como fonte de prova, mas acima de tudo como sujeitos de direitos que precisam ser acolhidos e amparados pelo Estado nessa situação de extrema dor.
Em alguns casos, há denúncias e medidas protetivas para a vítima. No entanto, mesmo assim, o agressor vai atrás, resultando na morte da mulher...
Só um quarto das vítimas tinham registrado ocorrência policial. Pesquisa que nós realizamos aqui no DF documentou que menos de 10% dessas vítimas tinham a medida protetiva em vigor no momento em que aconteceu o feminicídio. Uma quantidade grande de casos em que a mulher pede a medida protetiva e ela mesma pede para revogar. Portanto, a solução é aumentar o estímulo para que as mulheres denunciem as violências e solicitem medidas protetivas, aumentar uma sensibilidade do sistema de justiça para efetivamente deferir as medidas protetivas. Nós temos pesquisas do CNJ que indicam que o TJDFT é o tribunal que mais indefere medidas protetivas de urgência em todo o Distrito Federal e em todo o Brasil. Por outro lado, nós somos os mais rápidos em darmos a decisão. É um ponto positivo.
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