Na capital do país os feminicídios deixam, em média, 41 órfãos por ano. Nos primeiros 35 dias de 2023, no entanto, essa média ficou bem acima da registrada: nove filhos e filhas já perderam as mães, assassinadas em razão de gênero. Os dados são resultado do cruzamento das estatísticas do governo e levantamento de reportagens sobre os casos mais recentes ocorridos no DF.
Aos 49 anos, Jaqueline Guimarães custou a se dar conta de que estava enterrando a irmã caçula, Izabel Guimarães, 36, assassinada com um tiro na cabeça disparado pelo namorado. A sobrinha dela, de apenas 10 anos, assistiu à barbárie. "Por mais que a amemos, ela (filha de Isabel) nunca vai esquecer a violência vivida. Vai sempre se lembrar de ter ficado abraçada ao corpo ensanguentado da mãe", lamentou, aos prantos, em tom de revolta.
O depoimento de Jaqueline ao Correio é entrecortado por pausas, como se ela buscasse as palavras mais apropriadas para expressar a extensão do vazio e da preocupação com a sobrinha. "As pessoas ficam dizendo para (eu) ser forte, que a vida continua. Eu não quero ser forte. Eu não consigo ser forte. É tudo muito injusto e, ainda que esse assassino pegue pena máxima, essa dor jamais vai passar."
Traumas antes e depois
A psicóloga Jhanda Siqueira explica que o trauma da violência contra a mulher antecede o feminicídio e também pode gerar sequelas para a vida toda. Nas palavras dela, ninguém passa ileso por uma violência, fato que gera em crianças, adolescentes e jovens, sensação de abandono e solidão porque as pessoas que deveriam estar passando segurança estão mostrando agressão.
Quando as agressões psicológicas, verbais e físicas culminam com o assassinato da mãe e esse filho presencia o crime, o trauma ocorre em diversos níveis. "A criança sente que não tem valor, pois ao ver o pai matando a mãe, sente que o pai, de certa forma, também está matando a sua existência. O luto da criança tem vários sentimentos envolvidos: medo de todos, falta de vínculo seguro na vida, entre outros. Entre as consequências, estão o risco de depressão, ansiedade ou o Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Ela também pode se tornar agressiva", acrescenta a psicóloga.
A profissional explica ainda que o ideal é que as crianças que passam por esse tipo de trauma tenham acompanhamento psicológico e psicopedagógico até a vida adulta para que não se tornem adultos disfuncionais. "A tendência é que o trauma gere dificuldade de confiar nela mesma e nos outros. Pode também se transformar em uma pessoa abusiva, por espelhar o comportamento do pai. Elas se identificam com o agressor como forma de defesa, o que pode fazer com que nunca se relacionem de forma equilibrada", destaca Jhanda.
Para a copeira Márcia Santos, 33, a dor de perder a irmã Mirian Nunes, 26 anos, morta, asfixiada, pelo ex-companheiro Maxwel Lucas Rômulo Pereira de Oliveira, 32, é um fardo pesado demais para a família. "Eu e meu irmão estamos tentando ajudar minha mãe a seguir. Ela está vivendo um dia de cada vez e busca forças nos filhos e netos. Posso dizer que um pedaço dela foi embora (com Mirian)", descreveu.
Mirian teve três filhas: Lara Sofia, 6, Ana Mikaela, 8, e Maria Alice, 2 meses. Com um fio de voz, a tia das crianças conta que elas ainda não conseguiram processar que a mãe não voltará mais para casa. A mais velha, Mikaela, fez um desenho da mãe no caixão. A do meio, Sofia, não consegue se referir à mãe no passado. "Dia desses, ela falou algo que me marcou muito. Disse que não podia ficar longe da mãe, pois poderia adoecer. Tive que explicar que a Mirian não está mais aqui. Agora, vive no céu", relatou aos prantos. O Correio tentou contato com os familiares de Jeane, Giovana e Fernanda, mas eles preferiram não se manifestar.
O aumento das estatísticas comprova que, por mais que o governo anuncie medidas para conter os assassinatos de mulheres em razão de gênero, elas não têm dado respostas concretas para conter o avanço desse tipo de crime. Entre 2015 e novembro de 2022, houve 152 feminicídios no DF.
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- Telefone 180 (Central de Atendimento à Mulher)
- Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam): funcionamento 24 horas por dia, todos os dias:
Deam 1: previne, reprime e investiga os crimes praticados contra a mulher em todo o DF, à exceção de Ceilândia.
Endereço: EQS 204/205, Asa Sul.
Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673
E-mail: deam_sa@pcdf.df.gov.br
Deam 2: previne, reprime e investiga crimes contra a mulher praticados em Ceilândia.
Endereço: St. M QNM 2, Ceilândia
Telefoes: 3207-7391 / 3207-7408 / 3207-7438
Comitê tem até março para apresentar solução
Na última semana, o governo criou um comitê que reúne integrantes de nove secretarias de Estado, além da Defensoria Pública do Distrito Federal e da Companhia Energética de Brasília (CEB). A força-tarefa é coordenada pela Secretaria da Mulher do DF e tem 45 dias para apresentar um relatório com as medidas que serão adotadas para conter o avanço desse tipo de crime na capital. O prazo vence em 24 de março. O documento final deve ter propostas de prevenção, proteção, acolhimento e eliminação de todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres.
A governadora em exercício Celina Leão externou sua preocupação com os filhos das mulheres assassinadas, sobretudo os menores, que de uma hora para outra ficam sem pai e sem mãe e, muitas vezes, vão parar em abrigos. "A igualdade estabelecida pela Constituição não há na sociedade", frisou.
Levantamento realizado pela Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF) da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP) aponta que, desde março de 2015, quando entrou em vigor a "Lei do Feminicídio", até o mês de dezembro de 2022, 74% dos casos ocorreram dentro de residências. Os dados revelam ainda que em 65%, a motivação foi o sentimento de posse, ciúme ou não aceitação do término do relacionamento. De março de 2015 a dezembro de 2022, 51,8% das vítimas não haviam registrado ocorrências anteriores de violência doméstica pelo mesmo autor.
Por meio do Programa de Atendimento Multiprofissional às Vítimas de Violência (Pró-Vítima), a Secretaria de Justiça e Cidadania do DF (Sejus) oferece assistência social e psicológica às pessoas vítimas, seja de forma direta ou seja indireta, de violência, dentre as quais estão crianças e adolescentes órfãos do feminicídio.
Publicada no Diário Oficial do DF em agosto de 2021, a Lei Nº 6.937/2021, de autoria do deputado Fábio Félix (PSol), instituiu o Programa Órfãos do Feminicídio, que estabelece ações de atenção e proteção a essas crianças e adolescentes. O projeto deve compreender a promoção, entre outros, dos direitos à assistência social, à saúde, à alimentação, à moradia, à educação e à assistência jurídica gratuita para órfãos do feminicídio e respectivos responsáveis legais.
Além disso, a lei determina a obrigatoriedade de que a Polícia Civil comunique ao Conselho Tutelar competente, o nome completo e a idade de crianças e adolescentes dependentes de vítimas de feminicídio para que sejam acompanhados pelo poder público. O atendimento aos órfãos e aos responsáveis legais deverá ser realizado de forma integrada entre os Centros de Referência Especializados em Assistência Social e os serviços que compõem a Rede de Proteção às Mulheres em Situação de Violência e o Sistema de Garantias de Direitos de Crianças e Adolescentes.
*Estagiário sob a supervisão
de Adriana Bernardes