"Acabou de sair do forno", disse o ourives João Miguel da Silva mostrando um anel de ouro para a reportagem, na 505 Sul. Ele é um velho conhecido do Correio. Há 10 anos, o jornal foi a sua ourivesaria para conhecer melhor a história do pioneiro que é um dos primeiros ourives da capital do país. Em 2013, ele contou para a então repórter Thalita Lins um pouco da trajetória e do ofício, que exerce com muito prazer e dedicação. Agora, destaca o que viu e viveu desde então. "Eu cheguei em Brasília em 12 de dezembro de 1958, às 14h. Às 15h eu já estava trabalhando", inicia.
As habilidades com a confecção de peças de ouro e prata começaram a ser desenvolvidas há 70 anos, em 1953, quando ainda morava na terra natal, Itaporanga (PB), onde trabalhava no roçado e passava fome junto aos seis irmãos. "Um primo era ourives e decidiu me ensinar o ofício. Depois passei a trabalhar com isso. Mas o patrão era muito ruim, não ensinava tudo para os empregados, porque queria que a gente ficasse na mão dele", rememora o paraibano de 87 anos.
No entanto, a ideia de vir embora para a tão sonhada nova capital, não partiu da frustração profissional, mas de uma desilusão amorosa. "Eu gostava muito da minha primeira namorada. Um dia ela terminou comigo e passei a noite chorando por causa disso. No dia seguinte, embarquei para Brasília, em um pau de arara. Foram 12 dias de viagem de lá para cá, sentado em um banco de madeira estreito", conta. "Nessa época, eu era jovem, sentia nada não. Minha vontade mesmo era de chegar", recorda. A memória da frustração amorosa se transformou em gratidão com o tempo. "Eu gostaria de reencontrar essa antiga namorada para lhe agradecer. Se não fosse a atitude dela, ainda estaria lá na Paraíba, cheio de filhos e passando fome."
Com os pés em solo candango, estabeleceu-se na antiga Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, onde ainda mora. Ele viveu em barraco de madeira como a grande maioria dos imigrantes que vinham de todas as parte do país para concretizar o sonho de Juscelino Kubitschek. Miguel trabalhou primeiro na própria Cidade Livre, mas apenas durante os primeiros meses, logo conseguiu montar o seu negócio em uma loja na W3 Sul. "Não tinha nada aqui quando eu cheguei. A Rodoviária do Plano Piloto estava começando a ser construída, assim como as sedes dos Três Poderes. A W3 Sul ainda estava começando a ser asfaltada", lembra.
Miguel tem na memória todas as fases pelas quais a avenida já passou: surgimento, ascensão, apogeu e a decadência da via, que já foi considerada o shopping center de Brasília. "Aqui tinha de tudo, lojas, restaurantes e botequins. A W3 Sul também tinha a boemia da vida noturna."
O auge do "boulevard brasiliense" foi nos anos 1970. João Miguel atribui a decadência à construção dos shoppings da cidade. "Depois que construíram esses shoppings, as lojas foram fechando uma a uma. Poucas restaram, como o restaurante Roma e a minha ourivesaria."
O ourives de Brasília não soube responder o que mais sente falta da capital de outros tempos. "Eu nem presto atenção a muitas coisas. Minha vida sempre foi de casa pro trabalho. Nunca gostei de farra. Sou muito reservado. Na minha rua, no Núcleo Bandeirante, tem 24 casas, das quais conheço apenas três", revela.
Peças
Para chegar à loja Miguel Ourives são 24 degraus que o pioneiro, apesar da idade, sobe e desce com vigor todos os dias. "O primeiro de Brasília!", anuncia o cartão de visita. Laminadores manuais e elétricos, alicates, maçarico, tribulet e alargador de aliança compõem o cenário. No ar, o cheiro persistente de metal. As manchas nas pontas dos dedos dão sinal de que Miguel usara o polidor nas peças encomendadas. "É a profissão que mais suja as mãos, mas eu nem me importo. Fico é alegre, porque significa que eu trabalhei", diz, com o mesmo entusiasmo que explica a função de cada uma das ferramentas e máquinas que dispõe na salinha localizada no primeiro andar, no Bloco C da 505 Sul. O ourives sabe fazer todo tipo de joia, como anéis, brincos, pulseiras, braceletes e colares. Com bijuterias, ele se limita apenas a consertos.
Miguel é referência na área na ourivesaria, respeito que adquiriu após sete décadas na produção de joias de ouro e de prata. "E ainda não aprendi nada. Todo dia descubro algo diferente", exagera. Assim como em 2013, o paraibano se queixa da queda nos negócios, o que atribui ao advento da concorrência das semijoias. Ainda assim, sua sabedoria é respeitada. Mais de 3 mil pessoas participaram de cursos ministrados por ele. Uma delas foi uma embaixatriz do Japão. Seus ensinamentos chegaram ao extremo norte do Brasil, no Oiapoque (AP), onde também deu aulas. Entre os clientes atendidos por Miguel, há figuras ilustres, como a escritora Rachel de Queiroz, por intermédio da irmã que morava no Lago Sul, e a ex-presidente da República Dilma Rousseff.
Tanto amor à profissão não significa que não haja arrependimentos na vida profissional de João Miguel. No ano seguinte à sua chegada à futura capital, ele recebeu uma proposta para ser bombeiro na cidade, mas recusou. "Imagina como eu estaria hoje? Você não vê ourives rico por aí", lamenta.
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