"Um rastro de destruição incalculável", é como especialistas descrevem o resultado do ato terrorista que ocorreu no último domingo, nos prédios do Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto. Um dia após terroristas invadirem a praça que abriga os três poderes do país, cacos de vidro, pedaços de blocos de cimento soltos do chão e objetos danificados que vão desde cadeiras e mesas, até peças de valores inestimáveis, como obras de arte, esculturas e exemplares da constituição fazem parte do cenário de depredação pública e colocam em risco o patrimônio cultural tombado do Distrito Federal. Com prejuízo ainda não confirmado, especialistas ressaltam que a destruição vai além de bens materiais: a simbologia democrática da Praça dos Três Poderes também foi atacada.
Técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-DF) participaram ontem à tarde de uma reunião com a Ministra da Cultura Margareth Menezes, na qual ficou decidido que o trabalho de levantamento e identificação de danos ao Patrimônio Cultural, in loco, será iniciado nesta terça-feira (10/01), assim que os espaços forem liberados pelos órgãos responsáveis pela perícia. Mais cedo a ministra se manifestou nas redes sociais dizendo que "o patrimônio histórico material e imaterial do Brasil foi barbaramente atacado e em parte destruído neste dia 8 de janeiro em Brasília". E completou: "É urgente avaliarmos os danos e começarmos a recuperação e restauro de todo patrimônio que foi brutal e absurdamente arrasado. Um quadro de Di Cavalcanti destruído a facadas revela tamanha ignorância e violência desses atos abomináveis."
No prédio do Palácio do Planalto, a maioria dos vidros foi quebrada na ação dos terroristas, que depredaram até mesmo o chão de granito. Mesas, cadeiras, computadores, televisores, documentos e obras de arte também foram quebrados e até destruídos. Foram, ainda, levantados o roubo de armas, destruição de gabinetes, obras de artes, equipamentos eletrônicos, janelas, mesas e armários, além de móveis da sala da primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja. Os extremistas roubaram armas e munição de uma sala do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), segundo informações da própria corporação.
O prédio passou por reparos iniciais ainda ontem, como limpeza no espelho d'água, e medição para troca de vidros. Conforme apurado pelo Correio, as construções que abrigam os três poderes estavam com acesso restrito. Apenas peritos e servidores autorizados podem entrar nas áreas mais atingidas pelos atos. Os funcionários receberam orientação para não encostarem nos objetos danificados, e, se for necessário, usar um papel para não comprometer impressões digitais e material genético.
Pedro Grilo, vice-presidente do Conselho Arquitetônico e Urbanístico do DF (CAU-DF), e coordenador da Comissão de Patrimônio do DF, diz que Brasília foi construída em cima de um sonho civilizatório de mais de seis décadas. "É o sonho do início da República, e foi construída com as melhores mãos e mentes da época. Temos de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, Tom Jobim, Di Cavalcanti, Portinari, Athos Bulcão e Burle Marx, os maiores artistas brasileiros do século 20, que trabalharam em Brasília arduamente", reitera. Ainda, de acordo com o urbanista, os palácios atacados são exemplos bem consolidados da história brasileira. "A destruição deles mostra não só a falta de zelo e cuidado, como a total ignorância pelo o que isso representa. É extremamente lamentável", pontua.
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Apoio internacional
De acordo com o Iphan-DF, o patrimônio cultural do DF é diversificado e abrange diferentes categorias de bens culturais, de naturezas material e imaterial, e parte desse universo encontra-se identificada ou reconhecida por meio do tombamento ou do registro, entre outras formas de proteção e acautelamento, como os inventários. É o caso dos prédios invadidos e danificados no último domingo. De acordo com o Instituto, todos são tombados e fazem parte do Conjunto Urbanístico de Brasília.
Ainda ontem, o Ministério das Relações Exteriores agradeceu o apoio de líderes internacionais que se posicionaram contra o ataque terrorista perpetrado por apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) às sedes dos Três Poderes. "O Ministério das Relações Exteriores agradece e registra as inúmeras manifestações de apoio e solidariedade da comunidade internacional, pelos mais diversos canais, diante da violência golpista registrada no dia de ontem", disse o Itamaraty em nota. Dentre os países contrários ao ataque violento contra as autoridades federais, estão China, União Europeia, Estados Unidos e França.
Gustavo Cantuária, professor de arquitetura e urbanismo do Centro Universitário de Brasília (Ceub), reitera que a educação patrimonial é importante para a preservação cultural brasileira. "Nós, enquanto brasileiros, precisamos entender o patrimônio rico que temos. No caso de Brasília é entender a qualidade única da cidade, no contexto não apenas local, mas mundial. Brasília é única em nível mundial, e assim é seu tombamento, é assim que deve ser preservada", reitera.
Arte vandalizada
O Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) divulgou, ontem, uma nota em que pede punição aos manifestantes que destruíram obras de arte e o patrimônio público na invasão dos prédios em Brasília. "Nesse momento em que a sociedade assiste às notícias de destruição de várias obras de arte de notória importância histórica e de monumentos da arquitetura modernista e seus bens móveis integrados, é preciso exigir a punição dos responsáveis nos termos da lei", disse o comitê. Entre as obras destruídas estão o quadro As Mulatas, de Di Cavalcanti.
Na Câmara dos Deputados, a avaliação preliminar das obras de arte constantes do acervo detectou que dos 46 presentes protocolares expostos no salão verde da casa, seis estão desaparecidos ou irrecuperáveis. Muitos foram encontrados com danos pontuais que poderão ser restaurados. É o caso do: Muro Escultórico, de Athos Bulcão, que foi perfurado na base; a Bailarina, de Victor Brecheret, que foi descolada da base; a Escultura Maria, Maria, de Sônia Ebling, que foi marcada com paulada. A Câmara informou, ainda, que não foram danificadas: a escultura de Alfredo Ceschiatti, em bronze fundido, conhecida como Anjo; o painel Candangos, de Emiliano Di Cavalcanti; os painéis Araguaia e Alumbramento, de Marianne Peretti.
Vera Pugliese, presidente do CBHA e docente e pesquisadora do curso de teoria, crítica e história da arte da Universidade de Brasília (UnB) explica que o patrimônio destruído vai além do público: é artístico, cultural, histórico e simbólico. "São obras integradas à arquitetura e edifício que dizem respeito a toda uma construção de identidade e visão de futuro utópica que se projetou na construção de Brasília", diz.
Segundo Vera, a preocupação no ramo artístico vai além da obra em si. "Pensamos em todo o seu contexto, disposição, valores, não apenas econômico, mas também cultural, ainda mais quando temos um conjunto de obras que possuem representatividade em relação a tudo aquilo que nós acreditamos ser a nossa nação", diz.
Questionada quanto ao prejuízo que uma obra danificada pode gerar ao governo, Vera diz que é preciso levar em consideração o valor de mercado, diferentes protocolos para precificação. "Precisamos, sempre, levar em conta que para além do valor artístico em si, entra o valor histórico, a raridade, as condições às quais determinada obra foi criada, se foi doada ou adquirida, e a repercussão dessa obra".
Um corpo técnico com diversos profissionais bem formados deve ajudar na restauração das obras. "Não é um processo rápido ou barato, e o prejuízo causado é difícil de ser calculado, em todos os níveis", completa. O Correio questionou ao Iphan sobre o financiamento do restauro das obras mas, até a publicação da reportagem, não houve resposta.
Simbologia
Doutora em história da arte, e co-autora do livro Palácio do Planalto — entre o cristal e o concreto, Graça Ramos reitera que a destruição se dá pela simbologia do local. "O que aconteceu foi bárbaro, porque destruíram coisas de grande importância histórica. Grande parte da arquitetura interna foi destruída, coisas que Oscar Niemeyer inseriu no ambiente como parte da arquitetura, como a tela preciosa de Di Cavalcanti, que foi vandalizada com sete furos. Mas também a simbologia poética por trás da Praça dos Três Poderes também foi danificada, como é o caso do Palácio do Planalto, que foi construído em um período democrático, e muito vidro foi usado com o intuito de passar a ideia de transparência. Isso já mostra o impacto desse ato", diz.
Ainda, de acordo com Graça, toda a invasão e depredação atinge o cerne da questão democrática. "A Praça dos Três Poderes foi pensada como um triângulo, em que todos os poderes estão igualmente equilibrados. Ainda que distantes, são iguais. É a divisão que Montesquieu faz de República", explica. A especialista ressalta que ao irem até a praça, para depredar o patrimônio histórico e cultural, os golpistas destroem, também, a simbologia máxima de república. "Eles querem a criação de um poder que não tem equilíbrio, que é o extremo oposto do que a Praça simboliza, assim como é significativo destruírem obras que são símbolos da nossa diversidade", diz.
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Veja a lista preliminar de itens danificados
Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-DF), o trabalho de levantamento e identificação de danos ao Patrimônio Cultural aguarda a efetiva liberação dos espaços por parte dos órgãos responsáveis pela perícia
Obra Bandeira do Brasil, de Jorge Eduardo, de 1995 — a pintura, que reproduz a bandeira nacional hasteada em frente ao palácio e serviu de cenário para pronunciamentos dos presidentes da República, foi encontrada boiando sobre a água que inundou todo o andar, após vândalos abrirem os hidrantes ali instalados
Galeria dos ex-presidentes — totalmente destruída, com todas as fotografias retiradas da parede, jogadas ao chão e quebradas
O corredor que dá acesso às salas dos ministérios que funcionam no Planalto foi brutalmente vandalizado. Há muitos quadros rasurados ou quebrados, especialmente fotografias. O estado de diversas obras não pôde ainda ser avaliado, pois é necessário aguardar a perícia e a limpeza dos espaços para só daí ter acesso às obras
Obra As mulatas, de Di Cavalcanti — a principal peça do Salão Nobre do Palácio do Planalto foi encontrada com sete rasgos, de diferentes tamanho. A obra é uma das mais importantes da produção de Di Cavalcanti. Seu valor está estimado em R$ 8 milhões, mas peças desta magnitude costumam alcançar valores até cinco vezes maior em leilões
Obra O Flautista, de Bruno Jorge — a escultura em bronze foi encontrada completamente destruída, com pedaços espalhados pelo salão. Está avaliada em R$ 250 mil
Escultura de parede em madeira de Frans Krajcberg — quebrada em diversos pontos. A obra se utiliza de galhos de madeira, que foram quebrados e jogados longe. A peça está estimada em R$ 300 mil
Mesa de trabalho de Juscelino Kubitscheck — exposta no salão, a mesa foi usada como barricada pelos terroristas. Avaliação do estado geral ainda será feita
Mesa-vitrine de Sérgio Rodrigues — o móvel abriga as informações do presidente em exercício. Teve o vidro quebrado
Relógio de Balthazar Martinot — o relógio de pêndulo do Século XVII foi um presente da Corte Francesa para Dom João VI. Martinot era o relojoeiro de Luís XIV. Existem apenas dois relógios deste auto no mundor. O outro está exposto no Palácio de Versailles, mas possui a metade do tamanho da peça que foi completamente destruída pelos invasores do Planalto. O valor desta peça é considerado fora de padrão
O muro Escultórico, de Athos Bulcão, produzido em 1976, que fica a no prédio principal da Câmara dos Deputados foi perfurado na base.
A escultura Bailarina, de Victor Brecheret , localizada no prédio principal da Câmara dos Deputados, foi descolada da base.
A escultura Maria, Maria, de Sônia Ebling, produzida em 1980, no prédio principal da Câmara dos Deputados, foi marcada com paulada.