Um caso de desaparecimento que virou suspeita de homicídio. Cercado de mistérios e questionamentos, a saída de casa sem retorno de Sara Carlos de Morais Silva, 14 anos, está prestes a completar um ano, e segue sem respostas. Era manhã de 16 de janeiro de 2022 quando a garota deixou o lar, em um prédio de Taguatinga Norte, avisando à mãe que iria a um shopping em Ceilândia com uma amiga. Desde então, o paradeiro da adolescente permanece desconhecido. Ao longo de três semanas, o Correio refez percursos, conversou com amigos e familiares da menina e revela fatos que antecederam o sumiço de Sara. A jovem entrou para as estatísticas e integra a lista de 854 pessoas que desapareceram entre janeiro e 30 de novembro de 2022 na capital da República, segundo dados obtidos pela reportagem.
O caso de Sara segue em apuração na 17ª Delegacia de Polícia (Taguatinga Norte). A investigação da Polícia Civil caminha para a linha de homicídio, e não mais como desaparecimento, mas não está fechada. Foram pedidas quebras de dados telefônicos da adolescente e constatou-se que o aparelho permaneceu em uso até 30 de janeiro e esteve ligado na área da Estrutural. Os policiais também realizaram oitivas de familiares e amigos e faz novas diligências, que ainda não podem ser reveladas.
Segundo a reportagem apurou, Sara morava com a mãe, Ana Cleide Carlos de Morais, 47, o padrasto e a irmã caçula, de 9 anos, em um apartamento cedido pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional do DF (Codhab), na QNL 6/8. O prédio, também ocupado por moradores de rua, usuários de drogas e garotas de programa, fica a poucos metros do centro de Taguatinga. No dia em que desapareceu, Sara acordou cedo, arrumou-se e saiu para ir ao shopping com a colega, e avisou à mãe que retornaria às 16h. A dona de casa estava deitada na cama sob efeito de remédios antidepressivos e relata que a filha, antes de sair, teve um comportamento inesperado. "Ela me beijou e disse para eu ficar com Deus, coisa que ela não fazia."
Ana Cleide interpreta a atitude como uma despedida. Sara saiu de casa levando apenas o celular. Por volta das 16h30, como ela não tinha voltado, a mãe mandou áudios para o WhatsApp da filha. Dos três áudios, apenas um foi escutado, mas sem retorno. "Ela não atendia nenhuma ligação e foi quando liguei para a Vânia (outra filha de Ana Cleide) perguntando se a Sara tinha aparecido por lá, mas ela falou que não", conta.
A mãe de Sara registrou um boletim de ocorrência somente uma semana após o desaparecimento, pois ainda acreditava que a filha retornaria. Até porque não seria a primeira vez que a adolescente ficava fora de casa por mais de um dia. Em agosto de 2020, Sara disse à irmã que iria a um local da Estrutural e ficou por 10 dias sem dar notícias à família. No dia 17 do mesmo mês, ela reapareceu, mas se recusou a contar à mãe onde e com quem estava.
Adolescência
De uma família de cinco irmãos, Sara perdeu o pai aos 13 anos em decorrência de um AVC agravado pela covid-19. A mãe relata que a adolescente se revoltou e começou a se envolver com más companhias, a usar drogas e a ingerir bebida alcoólica. Aos 14 anos, abandonou os estudos após ser transferida de escola.
Algumas vezes, o Conselho Tutelar visitou a residência da família de Sara para orientá-la e incentivá-la a retornar à escola, sem sucesso. Em conversas com a mãe, a garota prometia mudança, mas a rotina era baseada em sair com os amigos e passar boa parte do dia nas redes sociais. Amigo inseparável, um menino de 17 anos e morador da Estrutural tinha livre acesso à casa de Sara. Para Ana Cleide, o garoto pode ser a única pessoa a ter notícias sobre o que aconteceu com a filha. O menor prestou depoimento na 17ª DP (Taguatinga Norte) por duas vezes, mas não confidenciou nenhuma informação relevante e em uma das oitivas chegou a chorar. O Correio localizou o adolescente, que se negou a conversar com a reportagem. Disse apenas que não fala com Sara há muito tempo e que a menina nunca teve esse tipo de comportamento.
Sara costumava passar mais tempo na casa da irmã Vânia Morais, 21, na Estrutural, do que na residência da mãe. A jovem é casada e mãe de uma criança, de 2 anos. As irmãs eram as melhores amigas e mantinham uma relação de confiança e lealdade. "Ela me contava tudo. Sempre quando estava com algum problema, ou queria desabafar algo. Eu sempre dava conselhos para ela voltar a estudar, a respeitar nossa mãe e ter um futuro. Eu era a pessoa que ela escutava", disse Vânia.
Saiba Mais
Foi ouvindo um dos conselhos da irmã que Sara resolveu trabalhar. Três meses antes do desaparecimento, um homem, conhecido como Fernando, dono de uma empresa de limpeza de estofados, convidou a garota para ajudá-lo no serviço, mediante pagamento de R$ 50 por dia. A mãe lembra bem de quando Fernando foi à casa dela, jantou e contou sobre o trabalho. "Aparentava ser uma boa pessoa e que, de fato, tinha a intenção de ajudar. Eu vi nele uma saída para a Sara", conta.
Sara começou a trabalhar, diariamente, na Quadra 4 da Estrutural. O serviço, no entanto, durou menos de duas semanas. Em um certo dia, ela chegou agitada em casa, mas evitou contar à mãe o que estava acontecendo. Mas Vânia soube o que aconteceu. À irmã, Sara revelou que, ao término do expediente, Fernando convidou os funcionários a comer pizza e beber na casa dele, também na Estrutural. Em determinado momento, todos foram embora. "Ela disse que começou a ver tudo preto e foi apagando. Quando acordou, percebeu que ele (Fernando) estava por cima dela, a estuprando." A menina correu e pediu socorro na rua. De acordo com a irmã, os vizinhos ouviram os gritos e agrediram o homem.
O Correio identificou e tentou localizar Fernando, mas ele deixou a Estrutural meses depois do ocorrido. No entanto, ocorrências semelhantes contra ele surgiram. Uma das vítimas relatou, pelas redes sociais, ter sofrido uma tentativa de homicídio. Segundo a jovem, ao sair de uma boate, foi abordada pelo suspeito, que insistiu que ela fosse com ele a uma after. Após a recusa, de acordo com a vítima, Fernando a segurou com força e os dois entraram em luta corporal. "Quando ele viu que não conseguiria me levar, pegou uma pedra e bateu contra a minha cabeça, me deixando tonta no chão e falando que iria me matar. Depois que fiquei tonta no chão, ele pediu para eu ir com ele ou morrer. Fingi que iria com ele e depois consegui fugir e fui à delegacia", detalha.
Ao menos seis garotas relataram situações semelhantes, que envolvem abusos sexuais, ameaça e violência física. Na Estrutural, Fernando não é visto há meses e chegou a se mudar para Ceilândia e Vicente Pires. Comerciantes e moradores da região afirmam conhecê-lo, mas que, depois do suposto abuso contra Sara, ele sumiu.
Ameaça
Após o episódio do suposto estupro, Sara parou de visitar a Estrutural e afastou-se de alguns amigos. Tornou-se, segundo amigos, uma adolescente reclusa, trancada no quarto e amedrontada. Com base no relato dos familiares, a menina passou a receber mensagens ameaçadoras de Fernando e de uma colega dele. Algumas, dizendo que a mataria se a encontrasse.
"Ela não saía mais de casa, e eu comecei a estranhar. Uma vez, ela me pediu dinheiro para ir embora, pois aqui (em Brasília) estava correndo risco de morte e colocando a nossa vida (da família) em perigo", desabafa a mãe. Quando as duas saíam de ônibus, por exemplo, Sara usava uma touca para esconder o rosto e dizia à mãe que era para não ser reconhecida. "Chegou um período que qualquer barulho que ela escutava, mandava eu trancar a porta, pois era perigoso", acrescenta.
A irmã Vânia também sentiu o afastamento de Sara. "Ela parou de vir aqui e até disse que temia pela minha vida também", disse. Foi nesse misto de medo e mistério que Sara saiu de casa e nunca mais voltou. "Ela não ficaria esse tempo todo sem falar comigo. Éramos muito ligadas, e ela era apaixonada pelo meu filho. Não tinha motivos para fugir, já que ela acabava fazendo tudo o que queria, por qual motivo fugiria? Por mais que ela esteja morta, queremos achá-la. Viver com essa dúvida é que não dá", desabafa a irmã.
Sumidos no DF
Em todo o Distrito Federal, 1589 pessoas desapareceram de janeiro de 2020 a novembro deste ano. O número faz parte do balanço de dados elaborado pela Divisão de Análise Técnica e Estatística da Polícia Civil (Date/PCDF) e foi obtido pelo Correio. O levantamento mostra também o quantitativo de pessoas que foram localizadas nesse período: 4789.
A considerar as regiões da capital com o maior número de ocorrências por desaparecimento, a maior cidade do DF, Ceilândia aparece em primeiro lugar, com o registro de 901 pessoas. Em seguida, Planaltina tem um total de 504 ocorrências do tipo, entre 2020 e este ano (até 30 de novembro). Samambaia (470) e Plano Piloto (450) ficam em terceiro e quarto lugar, respectivamente.
Os adolescentes são a segunda faixa etária em que mais são registrados desaparecimentos. De 2019 a 2021, 1859 meninos e meninas desse grupo sumiram no DF. Os adultos ocupam o ranking, com o total de 4556 pessoas. Em quase 90% dos casos de adolescentes que desapareceram, os registros são do sexo feminino.
Polyanna Silvares, promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NED) do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), analisa os dados e alerta para a criação de políticas públicas voltadas à temática. "É algo que a gente como Estado e sociedade precisa discutir muito e buscar caminhos. No meu ponto de vista, temos possibilidades imensas de aplicativos, para que possamos ter acesso à ferramentas de cadastros de desaparecidos, por exemplo", explica.
A necessidade em fomentar tecnologia como uma das alternativas para diminuir casos de desaparecimento é o fato de que a capital é um local central, com intensa movimentação de pessoas, pontua a promotora. "Um cadastro em um banco de dados atualizado constantemente é sinal de agilidade e eficiência do Estado."
No intuito de contribuir para a localização de pessoas desaparecidas, o MPDFT aderiu ao acordo de cooperação técnica celebrado entre o Conselho Nacional do Ministério Público e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), passando a integrar o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid).
Foi criado o Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID), com atribuição para coletar informações de pessoas desaparecidas ou vítimas de tráfico de seres humanos, registrar no sistema nacional e promover ações de busca e identificação de pessoas desaparecidas. Pela internet, é disponibilizado um formulário on-line, em que a população pode preencher com as informações e características físicas do desaparecido.
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