É na infância que construímos a base daquilo que seremos logo mais, na fase adulta. No início da vida, aprende-se, com a realidade que cerca a criança, o que é o amor, a raiva, o medo, a coragem, a compaixão e todos os outros sentimentos que vão traçar o caminho daquele pequeno indivíduo. No entanto, a pobreza se apresenta como o principal obstáculo de meninos e meninas que vivem nos bolsões de pobreza do Distrito Federal, cujo Produto Interno Bruto (PIB) per capita é o maior do país entre as unidades da Federação. O Correio percorreu duas dessas regiões para ver de perto as desigualdades gritantes da capital do Brasil e como as crianças vivem nesses lugares.
Ao lado da gigante Ceilândia fica o Sol Nascente, reconhecida como região administrativa autônoma desde 2019. Por lá, os desafios são enormes para a população carente, sobretudo as crianças. Em algumas regiões da cidade, as ruas não são asfaltadas e o esgoto corre a céu aberto. Em um mesmo lote do Trecho 2, 15 crianças vivem com a avó, divididos em dois barracos. Em um deles, mora dona Valdete Martins de Oliveira, que fica ao fundo do terreno e tem apenas três cômodos. "A senhora tem 85 anos", disse Suellen (12 anos) à avó, que não conseguia lembrar a própria idade para a reportagem.
A cozinha da casa de Valdete fica ao ar livre, nos fundos do terreno, sem fogão (faz a comida no barraco da frente, onde mora uma das filhas, Joana). O banheiro, que fica logo ao lado, não tem porta e o chão é coberto por restos de construção. Suellen foi a neta que Valdete permitiu que conversasse com a reportagem. A menina contou que gosta de viver ali, mas o sonho é se mudar. "Quando eu crescer, quero ser policial civil", revelou a estudante do 5º ano da Escola Classe 39. "É uma profissão bonita. Ajuda na segurança". Meu maior sonho é ajudar a minha família. Primeiro uma casa grande, depois dinheiro e roupas. Gostaria muito de ganhar um celular", anseia Suellen.
No casebre onde Suellen vive com a avó moram outras sete pessoas e falta de tudo: roupa, utensílios domésticos, material de construção para construir a cozinha, louças e alimentos. Uma televisão também faz falta e a reforma do banheiro é urgente. Os auxílios concedidos pelo governo são a única fonte de renda de dona Valdete, que mora há quase 20 anos no mesmo local.
Raíssa, prima de Suellen, não gosta do bullying que sofre na escola, onde é chamada de "pé de toddynho", em referência aos pés sujos pelo barro da rua sem asfalto. Os netos de dona Valdete gostam de brincar no barreiro que fica ao lado do lote, próximo a um córrego. "Nos divertimos também brincando de casinha, cada um faz um papel", relata Suellen.
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Periferia
A 15km do centro da capital do Brasil fica a Cidade Estrutural, cidade que foi fundada e que cresceu em função, principalmente, do lixão desativado, que já foi o maior em atividade da América Latina. A região é uma das mais pobres do Distrito Federal, mas, dentro dela, também há desigualdades. A Chácara Santa Luzia é uma periferia dentro da periferia. Poucas ruas têm asfalto e nem todas as casas possuem fornecimento regular de água potável. Os moradores buscam água no chafariz instalado pela Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb). O esgoto das casas da região vai para as fossas, que ficam dentro dos lotes, ou é despejado na rua, o que causa um forte odor em alguns pontos.
A casa de Josilene de Sousa Santos, 25, fica em Santa Luzia. Lá, ela mora com os filhos Charlles (10) e a pequena Aylla, de 7 meses. A escola do menino é na Estrutural mesmo, no Centro de Ensino Fundamental 2. Todos os dias, ele tem que caminhar 400 metros para conseguir pegar a condução escolar rumo à instituição. "Para pegarmos coletivo normal é preciso caminhar mais de um quilômetro até a Estrutural", explica Josilene. Charlles é uma criança mais caseira. Uma alternativa de espaço para brincar seria o Parque Olímpico, próximo dali, lugar ao qual a mãe impõe restrições. "Lá tem uns meninos com a mesma idade dele, mas que já mexem com coisa errada. E se eles forem fazer algo contra o Charlles, ele não sabe se defender. Quando ele vai, sempre tem que ir acompanhado por mim ou pelo pai", esclarece a mãe.
Charlles teve muita dificuldade de confessar para a reportagem o maior sonho da vida dele. Mas como Suellen, do Sol Nascente, pretende ser policial. "Porque protege as pessoas dos ladrões", explica o garoto. A casa onde vive com a mãe, dona de casa; o pai, armador de ferragens; e a irmã pequena já foi furtada várias vezes. O alvo são os botijões de gás de cozinha e também alimentos guardados na geladeira. Após longa insistência da mãe, Charlles conseguiu enumerar dois sonhos: ganhar um videogame e um celular. A fonte de renda da família, além do que o pai ganha, vem do Auxílio Brasil, do governo federal, e do programa Prato Cheio, do GDF.
A poucos metros da casa de Charlles, mora um amigo dele, o Fredy, 8. Mais extrovertido, adiantou logo que o maior sonho é ser cantor e ser famoso quando crescer. "Gosto de cantar música da igreja e música de vaqueiro", diz o menino. A mãe, Kassia Sousa, 33, acabara de abrir um brechó de venda de roupas, que ficam expostas em frente de casa, na rua sem asfalto, onde Fredy costuma brincar com os amigos da redondeza. "Eu quero ir para o Rio de Janeiro fazer música e comprar um Camaro", sonha o menino. Estudante do segundo ano da mesma escola que Charlles, gosta de andar de bicicleta e patins no Parque Olímpico. "Seu fosse governador do Distrito Federal, baixaria os preços de alguns produtos, como arroz, feijão, carne, danone, essas coisas…", detalha Fredy.
Sobre a água que chega às torneiras, Kassia, mãe de Fredy, diz que ele e a meninada da rua já adoeceram, com diarreia e vômito, por conta da má qualidade. "Mas eu não levo ao posto de saúde, porque a gente só passa raiva lá. Eles destratam a gente. Prefiro ir à farmácia comprar remédio por conta própria", confessa. A dona de casa Maria José Brito dos Santos, 60, concorda com a amiga e vizinha. Ela é mãe de cinco filhos, entre eles Victor Beto, criado como irmão de Fredy na mesma rua. "Quero ser policial, porque acho legal as operações que eles fazem por aqui", revela o estudante do Centro Fundamental 3, no SIA.
Victor Beto gosta de jogar basquete na escola. Quando volta para casa, a mãe fica de olho. "Só deixo o Victor ir para a rua acompanhado por mim, porque meninos maiores procuram encrenca e gostam de bater nos mais novos", diz a mãe.
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Restrições
Procurada pelo Correio para falar da situação do fornecimento de água na Chácara Santa Luzia, a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) disse que a região se encontra em área limítrofe com o Parque Nacional de Brasília, uma unidade de preservação integral, com restrições de ocupação de ordens jurídica e ambiental.
Segundo a companhia, as restrições impedem a construção de infraestrutura básica no local e, como forma de amenizar a situação da população, a Caesb usa o caminhão-pipa para o abastecimento do chafariz, com água potável, três vezes ao dia.
Fonte: Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD 2021)
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