VIOLÊNCIA

"Nós temos um retrocesso nessa questão de gênero", afirma juíza do TJDFT

Magistrada e autora de dois livros sobre abusos domésticos, Rejane Suxberger falou ao Podcast do Correio sobre a necessidade de se combater agressões contra mulheres. "A gente vive um tempo que falar de gênero é como falar de algo que afronta a família", ressalta

Naum Giló
postado em 08/12/2022 05:56 / atualizado em 08/12/2022 05:57
 (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press)

O Podcast do Correio recebeu, ontem, Rejane Jungbluth Suxberger, juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). A magistrada atua na vara de violência doméstica e dedicou parte da vida acadêmica ao assunto, com dois livros publicados. Às jornalistas Adriana Bernardes e Denise Rothemburg, Rejane falou sobre a necessidade de que haja uma mudança de postura sobre gênero em toda a sociedade, começando pelos lares, mas que a iniciativa deve partir do Estado. "A gente vive um tempo que falar de gênero é como falar de algo que afronta a família", desabafa a juíza. 

Rejane fala da urgência de uma divisão mais equânime dos cuidados da família entre o homem e a mulher. "A divisão sexual no trabalho ainda é muito forte e isso só vai ser diluído quando houver iniciativas de políticas públicas", pontua. Nas salas de audiência, os operadores da justiça também precisam ter um olhar diferenciado no tratamento à mulher vítima de violência. "Não adianta eu promover campanhas para que sejam feitas as denúncias e a mulher chegar no sistema e não ser acolhida, desde a delegacia, até o último julgamento no tribunal superior. Esse acolhimento é a escuta." 


O que conseguimos avançar nesses mais de 10 anos em que a senhora atua na área de violência doméstica?

O que percebo é que a Lei Maria da Penha foi um divisor de águas na nossa sociedade. Mas ainda existem algumas situações que merecem observação mais apurada, não só do legislador, mas de toda a sociedade e do Poder Executivo. Precisamos de políticas que deem mais atenção ao enfrentamento à violência. Passamos por um período bastante complicado, que foi o pandêmico. Se formos olhar as estatísticas, por exemplo, vemos que a violência diminuiu. Mas a verdade é que houve subnotificações. Mulheres e crianças estavam presas dentro de casa. A falta de escola, que é o primeiro lugar que as crianças pedem socorro, estavam fechadas. Com o retorno à rotina, às escolas, à sociedade, observamos que os números voltam a aparecer. Nós temos um retrocesso nessa questão de gênero, que é preciso correr atrás. Os ventos não estão mudando. A verdade é que eles nunca foram a nosso favor.

A questão da violência sexual é um fator extremamente grave e muito usado pelo homem na relação de dominação da mulher. Como mudamos isso, sabendo que boa parte desses estupros ocorrem dentro de casa?

Quando chegam às salas de audiência, muitos homens estão revoltados, porque eles têm essa ideia de poder enraizado. Eles podem mandar naquela mulher, porque elas seriam seres de segunda categoria. Evoluímos muito pouco nesse sentido. É muito triste quando a gente se depara com a violência sexual, porque o olhar para o homem é muito mais fraterno do que para a mulher. Infelizmente, ainda se leva em conta o comportamento da mulher, independentemente da idade. Deixa-se de olhá-las como vítimas, como uma criança, para colocar na posição de mulheres que seduzem e acabam sendo responsabilizadas e os homens viram a vítima. Estudando e pesquisando, eu vi como isso é relatado e questionado, como as mulheres são revitimizadas por perguntas muito mais sobre o comportamento delas, o que vestiam, o que beberam, como eram dentro de casa, do que o do homem. Eles chegam muito revoltados, dizendo que não são bandidos, que não sabem o que estão fazendo ali.


Como mudar essa visão e esse comportamento masculinos que estão tão arraigados?

Essa mudança tem que começar dentro de casa. A gente vive um tempo que falar de gênero é como falar de algo que afronta a família. Esse tipo de pensamento ainda permeia muito dos lares. Se falarmos de gênero, de respeito ao outro, de igualdade, que realmente precisa existir entre homens e mulheres, pouco vamos avançar no enfrentamento à violência contra a mulher.

O que a mulher que não consegue sair dessa situação, seja porque é de baixa renda ou por causa dos filhos, precisa fazer primeiro?

Essa mulher precisa ter uma rede de apoio. Quando ela chega à rede de justiça, geralmente é sem apoio, como família e amigos. A vítima vive um ciclo de violência. Primeiro, existe a tensão; depois, a agressão; e, em seguida, tem a lua de mel, que é o momento em que a mulher tem a expectativa de que o companheiro ou companheira vai mudar — lembrando que o agressor pode ser outra mulher. A periodicidade do ciclo diminui na medida em que a intensidade aumenta, e as pessoas vão se cansando, porque a rede não entende porque a mulher permanece naquele ciclo, e ela fica muito só. A violência doméstica não se resolve só com o direito. É necessário acompanhamento psicológico e apoio da rede da mulher. Eu não tenho como tirar de dentro de casa uma mulher que depende financeiramente do homem, ou tirar o homem de dentro de casa e deixar essa mulher desguarnecida. É algo que envolve toda a sociedade e o Estado.

A senhora falou que essa conscientização precisa começar dentro de casa, mas que muitas famílias têm a violência como algo naturalizado...

Vamos entrar em uma loja de brinquedo e vejamos o que tem para comprar para menino e para menina. Ferro de passar, panela, boneca e vassoura estão na parte feminina. Para os meninos, são armas, carrinhos e brinquedos de montar. Desde muito cedo, a sociedade incute isso: as mulheres são as responsáveis pelos cuidados. Nas faculdades, nos cursos de cuidados, como enfermagem, fonoaudiologia e fisioterapia, a grande maioria ainda é de mulheres. Então, o Estado precisa de políticas, que já acontecem em outros países, trazendo o homem para dentro de casa para os cuidados. Quando uma mulher é contratada para um posto grande em uma empresa, observa-se se ela tem filho e o quanto ele vai prejudicar o trabalho dela e muitas não chegam a essas posições porque não têm como conciliar. Com o homem, isso não ocorre. Essas mudanças precisam vir com políticas de Estado de cuidados, tanto no incentivo às mulheres quanto na distribuição de responsabilidades com os homens. Na Espanha, onde estudei, tem a licença maternidade, que pode ser repartida entre o homem e a mulher, para que a mulher não seja afastada e tenha prejuízos e que o homem possa ter os cuidados com o filho. Então, existe a solução, mas é preciso a tomada de consciência de todos e a iniciativa é do Estado.

 

A visão machista ocorre em todas as esferas sociais. O sistema judiciário já tem um olhar mais progressista às questões relacionadas à violência de gênero?

Um exemplo é a lei Mariana Ferrer, que previne a revitimização da mulher na sala de audiência. Quando você está diante de uma mulher e de um homem que estão na situação de violência doméstica, não tem como julgar da mesma forma que você julga um furto ou um estelionato. Deve-se lembrar que ali tem pessoas que têm relações íntimas ou de afeto. É o pai, o marido ou os pais dos filhos daquela mulher. A escuta do operador do direito precisa ser outra, no sentido de que ele não pode se distanciar da situação que é vivenciada dentro daquela sala de audiência, lugar onde ainda vemos casos de revitimização. Falo do operador do direito como um todo, desde quando a mulher entra na delegacia para registrar a ocorrência e não é bem atendida até quando ela interpõe recursos nos tribunais superiores. No entanto, progredimos bastante nos últimos anos. Precisamos caminhar muito ainda, mas eu tenho visto um certo empenho de todo o sistema nessa acolhida. 

Quais conselhos a senhora dá aos brasileiros e brasileiras sobre a violência contra a mulher?

Temos esperança no futuro, de que haja uma mudança de comportamento na sociedade e que os estudos de gênero sejam incorporados sem serem associados à destruição da família. A verdade é que queremos a diminuição da violência dentro de casa. Precisamos de um olhar de mais cautela para os nossos meninos e meninas, no respeito a ambos. Também espero mudanças de comportamento do governo, para que exista políticas de estado de cuidados, no fortalecimento da mulher junto a toda a sociedade. Somos responsáveis, na sua maioria, pela economia. A força da mulher é muito grande, basta verificar as mudanças que tivemos. 

Confira a integra da entrevista

 

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  •  07/12/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press Brasília- DF - Podcast do Correio a entrevistada é a Juiza do TJDFT Rejane Jungbluth Suxberger.
    07/12/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press Brasília- DF - Podcast do Correio a entrevistada é a Juiza do TJDFT Rejane Jungbluth Suxberger. Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press
  •  07/12/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press Brasília- DF - Podcast do Correio a entrevistada é a Juiza do TJDFT Rejane Jungbluth Suxberger.
    07/12/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press Brasília- DF - Podcast do Correio a entrevistada é a Juiza do TJDFT Rejane Jungbluth Suxberger. Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press
  •  07/12/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press Brasília- DF - Podcast do Correio a entrevistada é a Juiza do TJDFT Rejane Jungbluth Suxberger.
    07/12/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press Brasília- DF - Podcast do Correio a entrevistada é a Juiza do TJDFT Rejane Jungbluth Suxberger. Foto: Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press
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