Em busca de uma oportunidade para ingressar no ensino superior, 45.875 inscritos na capital do país participaram, ontem, do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A abstenção foi de 27,1% em relação aos 62.902 inscritos, considerando-se o índice de presença de 72,9% divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Foi um domingo calmo e poucas pessoas perderam a hora. Os participantes tiveram cinco horas e meia para responder 90 questões de linguagens e ciências humanas, além de redigir uma redação sobre os "desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil".
Giovana Lucas Rangel, de 18 anos, enfrentou o exame outras duas vezes, como treineira. Agora, garante que vai realizar o sonho de cursar medicina. Acompanhada da mãe, a advogada Lili Cristi de Melo Lucas, 48, a jovem contou que saiu de Sobradinho para fazer a prova no Ceub, na Asa Norte, com altas expectativas. "Morro de medo de virar meme do Enem. Eu sempre chego mais cedo, pra me situar onde fica a sala, e não pegar trânsito. É muito chão de onde moro até aqui", explicou, antes de fazer o exame. Na saída, disse que as provas foram cansativas, mas que se saiu bem.
A estudante disse que estava calma, porque tinha consciência de que havia se entregado ao máximo aos estudos. Já para a mãe, Lili, a tensão é grande. "A cada ano, o modelo de prova muda e Giovana se prepara para algo que não sabe se vai cair mesmo. Então, se tem uma programação, acho que deveria ser cumprida. Essas surpresinhas de prova deixam os alunos tensos, esse tipo de modelo que muda conforme o governo é ruim. Ano passado, na prova que ela fez, não caiu nada do que ela estudo sobre história, por exemplo", lamentou.
Saiba Mais
Isto é Brasil
A grande surpresa deste ano foi o tema da redação (veja pág. 6), avaliado pelos especialistas como um debate fundamental na sociedade. De modelo dissertativo-argumentativo, o Enem cobra dos alunos cinco competências na construção do texto: domínio da escrita, compreensão do tema, organização e interpretação das informações, argumentação e proposta de intervenção para solucionar o problema apresentado. Para Camile Clara Félix, 18, moradora de Padre Bernardo de Goiás, foi inesperado. "Achei que ia cair algo político porque aconteceu muita coisa nesses últimos anos entre o presidente Bolsonaro e o Lula", disse. A estudante do ensino médio percorreu quase 58km para chegar ao Plano Piloto e estava confiante. Com o desejo de cursar arquitetura, acredita que a prova do próximo domingo será mais difícil, por causa das questões de matemática.
Analu Vargas, professora de redação do Sigma, avaliou que a maior dificuldade dos participantes pode ter sido a possível restrição da proposta. "Este ano, a redação se voltou para um tema sociocultural ao falar sobre os povos tradicionais. Isso requer que os candidatos tragam abordagens referentes aos indígenas, quilombolas, extrativistas e diversas comunidades. A maior parte dos alunos pode encontrar dificuldades justamente neste ponto, ao abordar somente os povos indígenas, por exemplo, e deixar os outros de lado", analisou.
A abordagem incompleta pode ser vista pelo avaliador como tangenciamento do tema, que é considerado quase uma fuga do conteúdo, e ocorre quando o candidato faz um recorte do que foi pedido pelo Enem. "O foco é que os alunos não falassem apenas de um povo em si e trouxessem um repertório legítimo e de uso pertinente. Na construção, eles poderiam utilizar, por exemplo, o livro Macunaíma, de Mário de Andrade; o Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro; os próprios conceitos constitucionais; ou até mesmo as questões do noticiário, como a morte dos indigenistas Bruno e Dom", observou a professora.
Já a prova de linguagens, de acordo com a professora do Instituto Federal de Brasília (IFB), Maria Antonia Germano, seguiu os parâmetros de outras edições. Maria prestou a prova, neste domingo, para comentar com o Correio sua análise sobre o tema. "Teve textos verbais, não-verbais e textos mistos. Eles foram apresentados com extensões variadas, mas houve predominância dos textos longos, o que corrobora a necessidade dos candidatos estarem bem preparados para os diversos tipos de leituras. A prova de linguagens foi marcada por questões de interpretação, com gêneros diversos, tais como propaganda, conto, crônica, romance naturalista, artigo de opinião e poema", destaca.
Nos textos literários, a professora rela que caíram muitos textos de Machado de Assis, Chico Buarque, Luis Fernando Veríssimo e Carolina Maria de Jesus, por exemplo. "As temáticas dos textos valorizaram os direitos humanos, igualdade de gênero e aspectos da língua portuguesa. Pode-se considerar que foi uma prova muito rica em conteúdo com temas diversos de nossa sociedade", avaliou.
Visibilidade
"Em um tempo como o que estamos atravessando, de desmontes das políticas que atendem aos povos e comunidades originários, a escolha do Inep nos deixou felizes, porque traz visibilidade de um segmento muito grande e importante da sociedade brasileira. Somos ainda invisibilizados e ameaçados. Por isso, debater esse assunto é essencial", defende Edel Moraes, que desenvolve, na Universidade de Brasília (UnB), uma tese de doutorado sobre a pedagogia da floresta aliada aos saberes dos povos e comunidades tradicionais.
Integrante de uma comunidade extrativista do Arquipélago do Marajó, no Pará, Edel conta que é a primeira mulher do seu povo a cursar o ensino superior. Mas a expectativa é que com políticas públicas, ela não seja a única. "Ganhar essa repercussão nacional que trouxe o Enem nos deixa felizes justamente porque a temática será refletida, e por grande parte do público jovem, que vai para a universidade. Com essa redação, muitos brasileiros começaram a se perguntar o que são povos originários, e vão pesquisar e ir atrás desse conhecimento", analisa.
Oportunidade
No DF, mais de 30 mil inscritos já concluíram o ensino médio. Vinte anos depois de prestar a prova pela primeira vez, a bancária Vanessa Costa Cerqueira, 36, reviveu a experiência da avaliação. "Fiz a prova pela primeira vez em 2004. Neste ano, resolvi tentar porque quero tentar outra graduação", relata. Formada em letras, a bancária quer trilhar o caminho das artes; "Eu trabalho na área da dança, faço alguns cursos, dou aulas como freela. Mas sou bancária e decidi focar no ramo das artes agora."
Para Vanessa, a experiência de fazer o exame é desafiadora. "É tudo muito louco, sabe? Quando eu fiz, na primeira vez, não tinha nada disso. Era um dia só, a prova só tinha 63 questões, a redação era tranquila. E agora tudo mudou. Quando eu paro pra pensar que a média de idade dessa galera não chega na minha assusta um pouco, mas bora lá". Apesar dos desafios, a bancária esclarece que está tranquila. "Eu amo escrever, então acho que a redação vai dar bom, assim como a área de linguagens e humanidades."
O professor do Centro de Ensino Médio (CEM) 404 de Santa Maria Daniel Souza, coordenador do projeto Mais 1 no PAS (Processo Seletivo de Avaliação Seriada), avaliou a alteração do próprio tom das questões de ciências humanas. "Descreveria a prova como de grande mudança em diversos aspectos. Diferente de anos anteriores, em que a cobrança era muito sobre as questões de geografia, este ano caiu mais história e sociologia. No geral, a prova foi bem contextualizada, e tivemos debates de temas como classes sociais, racismo, e violência de gênero", cita.
O professor conta que um tópico pouco visto no Enem foi cobrado nesta edição. "As escalas cartográficas, assunto do primeiro ano do ensino médio, aparece muito nas provas do PAS, mas não no Enem, e este ano teve várias questões. Também tivemos um tom mais nacionalista, falando sobre a Amazônia, os povos originários, o sertão brasileiro. Houve, também, muita valorização da nossa própria produção, com muitos textos de jornais de matérias mais recentes", detalhou.