Educação

Lei que levou a cultura Afro-Brasileira para as escolas completa 20 anos

Duas décadas após a promulgação da lei que implementou o ensino étnico-racial em sala de aula, professores comentam os desafios e citam projetos desenvolvidos para abordar o tema com estudantes da rede pública do DF

Edis Henrique Peres
postado em 09/11/2022 06:00 / atualizado em 09/11/2022 11:32
 (crédito: Tainá Frota/Divulgação - Arquivo pessoal)
(crédito: Tainá Frota/Divulgação - Arquivo pessoal)

Pequenos gestos fazem muita diferença no desenvolvimento infantil e na inclusão racial. Tanto que vídeos com crianças negras ganham repercussão quando os pequenos são filmados, empolgados, ao encontrar um super-herói que enfrenta o mesmo desafio de preconceito, uma princesa com o mesmo tom de pele ou um profissional com o mesmo corte de cabelo e visual. São detalhes que mostram para as crianças que elas podem chegar aonde quiserem. Contudo, a história do Brasil suprimiu ídolos e heróis negros de suas páginas. Justamente por isso, em 2003 foi sancionada a lei 10.639, que estabelece como obrigatório o ensino da história e da cultura Afro-Brasileira nas escolas do país.

No entanto, prestes a completar duas décadas desde a sanção da lei, o dia a dia nas unidades de ensino não consegue vencer o racismo estrutural imposto pela sociedade. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Rosângela Azevedo Corrêa admite: "o Brasil não conhece o Brasil". Segundo a professora, a sociedade brasileira não se assume como pluriétnica e multicultural e, consequentemente, há uma negação da ancestralidade, especialmente quando ela vem de origem indígena e africana. "Parte do trabalho a ser feito é dentro das escolas e das universidades. Nas escolas para lidar com os alunos, e nas universidades para capacitar os professores que estão em formação a trabalharem a temática. Esses são temas complexos, principalmente com esses repetidos episódios marcantes de violência no país contra negros", lamenta.

A professora cita, por exemplo, a falta de visibilidade de artistas negros. "Lemos Saci e o Negrinho do Pastoreio, como parte do folclore, mas a grande maioria não conhece escritores e escritoras negras, então são várias camadas que precisam ser avaliadas na nossa sociedade", acentua. Rosângela destaca que uma das formas de conseguir, aos poucos, inserir negros em cargos de relevância é através do sistemas de cotas das universidades. "Não temos como falarmos em meritocracia quando temos uma diferença tão grande de ensino nas escolas públicas e particulares. No entanto, a ideia das cotas não é que o sistema seja eterno, mas que se desenvolva uma educação de qualidade no ensino fundamental e médio das escolas públicas para que se permita preparar os estudantes para entrar nas universidades", frisa.

Além das cotas, a professora reforça a importância de um acolhimento para quem ingressa na universidade. "Existe uma série de fatores que podem prejudicar a permanência desse estudante devido a realidade em que ele está inserido, por isso é válido que a instituição promova vias de permanência do estudante, com debates, acolhimento, e políticas públicas que de fato atendam aos negros. O grande problema é que hoje não temos uma política de Estado voltada para a questão étnico-racial do nosso país", defende.

 

Repensar o passado

A história do país foi contada, ao longo dos anos, sem o protagonismo dos negros, das mulheres, da comunidade LGBTQIA+, dos indígenas ou de qualquer pessoa que representasse o diferente. Assim define a professora Gina Vieira Ponte, idealizadora do projeto Mulheres Inspiradoras, criado em 2014, com o objetivo de revisitar a forma como a história é passada aos alunos. “O currículo original de ensino exclui os povos originários, as vozes negras e as mulheres”, observa.

Gina conta que o projeto nasceu da necessidade dela própria ressignificar a prática pedagógica em sala de aula. “Meu objetivo foi levar para os estudantes obras de mulheres, para que as meninas compreendessem o patriarcado que nos desumaniza, e para que pudessem sonhar também outras identidades humanitárias. Que elas percebessem que é possível ser jogadora, escritora, cientista, pilotar um avião, ser o que quiserem. Por isso, estudamos a biografia de mulheres inspiradoras e na última etapa do projeto, os estudantes são provocados a pensar nas mulheres das suas próprias vidas, de seu convívio, que têm esse papel inspirador”, relata.

Para a professora, o fundamental era que o aluno participasse da aula. “Não queria ficar na frente da turma falando sozinha. Por isso, repensei toda a minha forma de trabalhar para uma nova geração digital. Agora precisamos da formação dos professores para a temática, porque eu mesmo me formei sem que esses temas fossem debatidos. E em um país em que a maioria da população é negra, é preocupante que a educação ensinada nas escolas não se preocupe a contar a história desse povo, nem a fazer esse recorte racial”, acrescenta.

A professora do ensino fundamental da rede pública do DF, Mayssara Reany, ressalta a importância do Mulheres Inspiradoras devido a mudança pedagógica realizada nos docentes. Ela analisa que o desafio do Brasil é ter “uma história fundada no preconceito”. “O nosso racismo é muito estrutural, então não é apenas a implementação da legislação para que a temática seja trabalhada no dia a dia das escolas, que trará êxito às nossas ações pedagógicas. É necessário investir em formação docente, transformar a prática pedagógica a partir da adoção de cursos e formação, e trazer os ensinamentos para a realidade dos estudantes. Por isso que o Mulheres Inspiradoras fez tanta diferença na vida dos alunos e dos professores”, pontua.

Maria Eduarda de Farias, de 22 anos, estudante e moradora da Samambaia, foi uma das estudantes que teve a percepção de mundo transformada, em 2014, ao participar do projeto da professora Gina. “O Mulheres inspiradoras foi um grande divisor de águas na minha vida. Mudou muito a minha forma de ver o mundo, suscitou em mim um olhar crítico e com certeza foi o que iniciou a formação de um pensamento social e político mais consciente”, avalia. Maria Eduarda detalha que no projeto trabalhou, principalmente, as questões de gênero e racial. “Nos foram apresentadas mulheres negras que marcaram nossa história, o que é muito importante na construção de uma formação educacional multicultural, mesmo com todo o preconceito e as tentativas de inviabilizar os artistas, intelectuais e a história do povo negro”, finaliza. 

 

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  • Professora aposentada Gina Vieira Ponte
    Professora aposentada Gina Vieira Ponte Foto: Arquivo pessoal
  • Crédito: Tainá Frot/Divulgação. Entrevista. Gina Vieira Ponte, professora
    Crédito: Tainá Frot/Divulgação. Entrevista. Gina Vieira Ponte, professora Foto: Tain?Frot/Divulgação
  • Rosângela Azevedo: "há uma negação da ancestralidade indígena e africana"
    Rosângela Azevedo: "há uma negação da ancestralidade indígena e africana" Foto: Carlos Vieira/CB/D.A.Press

O que diz a Lei

A lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003 estabelece que o ensino fundamental e médio tenham em seu currículo escolar o ensino sobre a História e a Cultura Afro-Brasileira. O conteúdo programático deve contemplar a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição africana nas áreas social, econômica e política. A lei também prevê a inclusão do 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra, no calendário escolar.

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