Muito embora uma parte significativa de nossas raízes venha da África, esse legado é historicamente ignorado. Pessoas descendentes dos africanos, trazidos forçadamente para este lado do Atlântico, crescem sem ter referências valorizadas do seu continente ancestral, um dos fatores que impedem a cicatrização da ferida profunda do racismo estrutural. O projeto África É Nós surge como um dos esforços para a mudança de visão em relação ao continente onde surgiram as mais antigas civilizações de que se tem conhecimento.
O grupo, formado por profissionais africanos e afro-brasileiros, pretende aproximar os estudantes de uma escola pública de Ceilândia das histórias e das raízes a partir do intercâmbio cultural entre África e Brasil, além de resgatar elementos da riqueza cultural herdados de lá. Em sua primeira edição, o projeto promove palestras e oficinas no Centro de Ensino Médio 2 da cidade sobre cultura afro-brasileira, história da moda afro, estética negra e suas influências na moda afro-brasileira. As oficinas, que abordam atividades como maquiagem, turbante, penteados, passarela, percussão e fotografia preparam os estudantes para um desfile de moda, no dia 19 de novembro, em celebração ao Mês da Consciência Negra.
O projeto não tem apenas o objetivo de valorização das heranças culturais da África, mas também pretende estimular o empreendedorismo e o protagonismo negros. "Na verdade, o projeto começou com uma iniciativa nossa em 2015, quando fazíamos palestras gratuitas em escolas públicas do DF e do Entorno. Em 2021, conseguimos captar recursos e estruturar melhor a ideia, mas sempre com o propósito de difundir a cultura africana por meio do contato com nativos do continente, porque é raro vermos um nativo falando do assunto. Queremos também quebrar estigmas, como o da miséria", detalha o proponente e produtor executivo René Mapouna, 32, natural de Camarões. Na equipe, tem outro profissional do mesmo país de René e um da Costa do Marfim, além dos brasileiros. O protagonismo negro está presente do começo ao fim da cadeia de produção.
Nas oficinas de moda, os estudantes aprendem a trabalhar no modo africano. "Lá, nós fazemos a costura na hora. Então, temos que ter várias habilidades, diferente daqui, que tem o estilista, o costureiro e a pessoa que faz o corte como funções separadas", explica Mapouna. "Na África, as pessoas costuram na rua. O cliente vem com o modelo e dentro de uma hora a roupa está pronta. Se você não faz dessa forma, não é considerado um profissional da moda. É um conhecimento ancestral que pode ser uma fonte de renda para esses jovens."
Daniela Ferreira é a professora de oficina de passarela e acumula sete anos de experiência no assunto. Ela ensina sobre postura, passarela, olhar e as caras que eles precisam fazer no desfile. "E juntamos esse conhecimento ao universo da cultura africana, não só com as roupas, mas também com turbantes, maquiagem e pinturas corporais", detalha. Apesar de muitos nunca terem desfilado antes, ela conta que a evolução dos estudantes tem sido muito boa. "Tenho trabalhado, inclusive, com adolescentes em transição de gênero, que estão se descobrindo, e todos estão apaixonados. Além disso, tiro as dúvidas sobre como é trabalhar em agência, como modelo, booker e na seleção de looks".
O desfile de celebração da Consciência Negra também vai ter música, com shows de ritmos afro- brasileiros. São duas apresentações musicais com os artistas africanos Ober237, rapper poliglota originário de Camarões, e Big Nel, cantor e compositor do Benim.
Desafios
René Mapouna conta que os maiores desafios para que o projeto resistisse e crescesse foram a captação de recursos, que foi feita pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC-DF), e a comprovação da competência da equipe na cena cultural do DF. "Teve o preconceito também, que não é escancarado, mas indiretamente era isso. Mas conseguimos, sim, provar que somos capazes e reunimos profissionais de diversas áreas, como designers, comunicadores e elaboradores de projeto", comemora Mapouna, que já antecipa a segunda edição do África É Nós, em 2023, no Centro de Ensino Médio Integrado do Gama e no Centro Educacional 310, de Santa Maria, no mesmo formato de oficinas e palestras. O criador da moda camaronês vive há 15 anos no DF e é sócio-fundador da Afrikanus, linha de acessórios e roupas voltados para a valorização do seu continente natal.
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