Crônica

Crônica da cidade: Lágrimas de São Pedro

Adriano Lafetá era uma pessoa doce, sensível, amorosa. Como ressaltaram amigos e colegas de profissão — impossível, no caso dele, ser um sem ser o outro —, era um profissional exemplar

Mariana Niederauer
postado em 05/10/2022 00:01 / atualizado em 06/10/2022 19:00
 (crédito: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
(crédito: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)

O céu se preparou para chorar. O negrume das nuvens tomou conta e escondeu os raios de sol. Aqui debaixo, secávamos sob o mormaço, entristecidos pela perda de um grande homem. Ele nos deixou da mesma maneira discreta e gentil com a qual nos presenteou nos 66 anos de vida. Muito cedo, muito novo. Não choveu, mas a cidade manteve o luto no firmamento.

Adriano Lafetá era uma pessoa doce, sensível, amorosa. Como ressaltaram amigos e colegas de profissão — impossível, no caso dele, ser um sem ser o outro —, era um profissional exemplar, de texto irretocável, que, generoso, não perdia oportunidades de compartilhar um pouco do conhecimento com cada um.

Também cronista, escrevia belas mensagens nas redes sociais, onde também mantinha a todos informados sobre as peripécias e sorrisos do neto Tom e compartilhava análises profundas sobre o país, além de histórias tiradas da caixinha de afetos de uma memória invejável.

Um dos textos, dedicado ao pai, é particularmente emocionante para o momento, escrito na data em que seu Zé Lafetá chegaria ao centenário. "Gosto de lembrá-lo com música. Primeiro, porque minha mãe, a companheira da vida dele, era professora de piano. Mas não só. A casa sempre teve muitos discos, desde que lá chegou uma radiola. E eu curtia tudo, a começar da trilha sonora de My Fair Lady, que sabia quase toda de cor: 'Agora eu vou dançar / E nunca mais parar / E nunca mais sofrer'." É quase possível ouvi-lo cantarolar, com a voz potente, digna de radialista.

O texto nostálgico e repleto de amor cita com precisão momentos que marcaram a história dos dois. "Trago pela vida uma caixa com gravações originais de Orlando Silva que ganhei de seu Zé. Na marchinha de Cristóvão de Alencar e Benedito Lacerda, o cantor das multidões solta a voz: 'Vocês viram por aí / A chica chica boa? / É uma garota que fugiu / Lá da gamboa'. Não sei se antes ou depois desse presente, dei a ele os CDs 50 anos de boemia, de Nelson Gonçalves. Enfim, eu podia passar o dia hoje ouvindo todos esses músicos e muitos outros: Noel Rosa, Cartola, Caymmi, Pixinguinha, Ary Barroso, Villa-Lobos…", descreveu Lafetá, o filho.

E ao lembrar da data da partida do pai, fez poesia de fazer as nuvens no céu se acinzentarem e São Pedro chorar. "Tento ficar apenas com o silêncio feito naquele 6 de abril de 2008. Mas é perturbador, pois não me sai da cabeça uma canção que meu pai e eu não compartilhamos. Portanto, peço licença a seu José para incluir em nossa trilha sonora a gravação de Além do espelho, do grande João Nogueira, na voz do filho Diogo", finaliza, para puxar a letra, cujo refrão ouso compartilhar para finalizar esta crônica com certa melancolia, mas também com muito afeto. "A vida é mesmo uma missão / A morte é uma ilusão / Só sabe quem viveu / Pois quando o espelho é bom / Ninguém jamais morreu."

 


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