Uma única pessoa que decide doar seus órgãos pode mudar a existência de até oito pacientes na fila de espera por transplante. No entanto, mesmo que o simples gesto possa transformar completamente a qualidade de vida de quem aguarda pelo procedimento, a adesão da população é baixa. Em 2021, de 199 pacientes que vieram a óbito e atendiam aos critérios para serem doadores, apenas em 24 dos casos as famílias autorizaram o transplante. O mesmo se repete este ano: até o momento, de 142 pessoas que poderiam ser doadoras, somente 20 deram prosseguimento ao processo. Os dados foram revelados pelo enfermeiro da Central de Transplantes do DF, Anderson Galante.
No Dia Nacional de Doação de Órgãos, comemorado nesta terça-feira (27/9), o Ministério da Saúde decidiu lançar uma Campanha Nacional de Doação de Órgãos e Tecidos, com o tema “amor para superar, amor para recomeçar”. Anderson explica que o Setembro Verde, é destinado ao incentivo e conscientização da doação. “O que tem sido feito no DF é que quando há a doação, a central de transplantes dispõe do acompanhamento desse familiar para um suporte psicológico, uma forma de gratidão”, destaca.
Os irmãos, Darlan Pereira Barbosa, de 35 anos, e Daniel Pereira Barbosa, de 37, entendem bem a diferença que o transplante faz na vida de quem depende do procedimento. Em 2016, Darlan descobriu uma disfunção renal após um episódio de alergia, causada pela hipertensão. “Antes eu fazia check-up, mas nenhum exame era específico para o rim. Quando descobri (a disfunção), logo depois precisei começar a diálise. Eu tinha que ir ao centro de diálise de segunda a sábado e ficar duas horas em atendimento”, detalha.
Ainda em 2016, Daniel se ofereceu para doar o rim ao irmão. No entanto, Darlan tinha medo das consequências. “Depois que começamos a fazer os exames de compatibilidade, o médico explicou que se houvesse qualquer mínima possibilidade, apontada nos exames, do doador desenvolver problemas renais no futuro, o transplante não seria feito. Foi isso que me deu segurança de continuar”, afirma. Darlan ressalta que a vida mudou desde o procedimento. “Antes, sequer podia fazer uma viagem com a minha família, porque eu precisava fazer a diálise todos os dias”, conta.
Mesmo diante das dificuldades, os dois irmãos garantem que o vínculo de amizade e companheirismo cresceu durante o tratamento de Darlan. Para Daniel, poder ajudar o irmão foi uma alegria. “No meu caso, a vida não muda em nada. Depois que um dos rins é doado, o outro expande de tamanho e assume o papel do que foi retirado. No próximo mês eu já posso voltar às atividades físicas e os cuidados que preciso tomar são os mesmos de antes da cirurgia. O que falta, muitas vezes, é informação para as pessoas entenderem como ser um doador”, analisa.
Saiba Mais
- Cidades DF Vacinação contra poliomielite termina nesta sexta-feira (30/9)
- Cidades DF Taxa de transmissão da covid-19 aumenta e chega a 0,81 no Distrito Federal
- Cidades DF Ipec: Ibaneis sobe para 43% e Grass se consolida em segundo lugar com 16%
- Cidades DF Ipec: Damares cresce e empata com Flávia Arruda na disputa pelo Senado
Daniel se emociona ao lembrar dos dias após o transplante. Os dois foram internados em 4 de agosto, juntos, e fizeram a cirurgia no dia seguinte. Porém, devido a complicações, em 7 e 11 do mesmo mês, Darlan precisou voltar à mesa de operações. “Esse foi o pior momento. Quando meu irmão (Darlan) voltou e teve que ficar na UTI (unidade de terapia intensiva) e eu vi ele deitado fiquei com muito medo. Foi o mesmo dia da minha alta. Quando cheguei em casa, eu e minha mãe estávamos muito abalados”, relembra Daniel, com os olhos marejados.
Apesar disso, agarrada à fé e à união, a família se manteve confiante. Hoje, Darlan retoma, aos poucos, as atividades diárias. “Preciso fazer esforços menores, mas já levo a minha filha para a parada. E a expectativa é que a vida volte ao normal, sem nenhum problema”, relata Darlan.
Conscientização
Médico nefrologista da Clínica de Doenças Renais de Brasília e especialista em transplantes, Geraldo Freitas explica que alguns critérios precisam ser atendidos para o órgão poder ser transplantado. “Para isso, após a morte é necessário diagnóstico de morte encefálica. Nesses casos, há parada completa das funções neurológicas desde o tronco, tratando-se de situação irreversível e determinado diagnóstico de óbito com mesmo entendimento legal. Na morte encefálica os demais órgãos mantêm seu funcionamento. Também é necessário que o doador apresente boas condições dos órgãos ofertados e ausência de doenças que possam comprometer o potencial receptor”, esclarece. Alguns tecidos também podem ser doados, explica Geraldo. “As córneas, por exemplo, podem ser retiradas, mesmo horas após cessada a função cardíaca”, informa. No caso de Darlan e Daniel aconteceu a doação em vida, comum em casos de rim e fígado.
Geraldo aponta, também, que o principal desafio em atender as filas de transplante é a autorização familiar. “Segundo dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), o número de recusas de familiares para a efetivação de doações encontra-se em torno de 50%, na maioria dos estados. Portanto, a maior barreira para aumentar a doação de órgãos é a conscientização da população da importância deste ato e da importância de comunicar aos familiares seu posicionamento sobre este assunto”, ressalta.
Recomeço
O Instituto de Cardiologia e Transplantes do DF (ICTDF) é uma das unidades de destaque nos procedimentos realizados no Centro-Oeste. De 2007 até hoje, já realizou 2.030 operações. Carolina Couto, responsável pelo programa de transplantes, conta que a unidade aposta na habilitação dos profissionais. “No primeiro trimestre deste ano, realizamos 96 procedimentos no instituto. Atualmente fazemos transplante de fígado, rins, córneas e medula óssea”, revela.
Carolina acrescenta que, em 2009, o ICTDF iniciou os transplantes de coração. “De lá para cá somos um dos cinco hospitais do País a chegar ao marco de 300 transplantes cardíacos realizados. Atualmente, são 327 corações transplantados. Além disso, temos uma taxa de sobrevida bastante satisfatória, que nos últimos cinco anos tem ficado em torno de 70%”, salienta.
Adriana dos Santos Evangelista, 48, é uma das pacientes que teve a vida transformada. Após ser diagnosticada com miocardiopatia dilatada, mesma doença que levou a mãe à morte em 2012, ela descobriu que precisava conseguir um coração novo. “Eu desmaiei no velório da minha mãe e fui levada ao médico. Lá, a doutora pediu alguns exames e identificou a miocardiopatia. Depois, eu ainda cheguei a ter um infarto, coloquei um marco-passo, mas ainda assim, precisava de um transplante”, pontua.
A cirurgia de Adriana foi feita este ano, em 28 de julho. “Foi uma alegria. Antes, não conseguia nem tomar banho, porque meu coração estava muito grande, o marca-passo não estava funcionando direito. Meu antigo coração não dava conta de um procedimento operatório para trocar o aparelho de marca-passo”, relata. Depois da cirurgia, Adriana comemora a independência reconquistada. “Agora, posso tomar banho sozinha, não tive mais dores, posso andar sem cansar. Para quem tem dúvida, só tenho a dizer que a doação é uma benção na vida de quem recebe. Toda a minha família já é doadora. Quem doa, salva vidas”, finaliza.
*Estagiário sob a supervisão de Malcia Afonso
Saiba Mais
- Cidades DF DF recebe 14,5 mil doses para vacinação de crianças de 3 e 4 anos
- Ciência e Saúde TDAH: o transtorno que rotula pacientes com desinformação e preconceito
- Economia ANS suspende 70 planos de saúde e atinge 1,6 milhão de usuários
- Política Propaganda eleitoral na TV e no rádio termina nesta quinta-feira (29/9)
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.
Entrevista
Daniela Salomão, diretora da Central de Transplantes da SES-DF
Qual o procedimento para ser doador de órgão?
O que é definido, hoje, na legislação é que a família deve autorizar a doação de órgão após o falecimento do paciente. Essa norma é geral e não pode ser alterada por nenhum estado. Por um período, era possível que o paciente deixasse documentos assinados, se declarando doador, mas isso não tem mais validade legal.
Como é o processo de habilitação de um paciente que precisa receber uma doação?
O paciente passa primeiro por uma avaliação de uma equipe de transplante, que vai confirmar se ele precisa ser submetido ao procedimento. Se for o caso, ele é inserido em um sistema de gerenciamento, disponibilizado pelo Ministério da Saúde e usado em todo o país.
Qual o papel desse sistema?
O sistema vai correlacionar as informações do doador e do paciente que precisa do transplante. Isso é feito com base em regras técnicas definidas em portaria. Pode acontecer, por exemplo, de um paciente estar em estado mais grave que outro para receber a doação. Outros detalhes já definidos pelo sistema são o tamanho do doador, por exemplo. Um fígado grande não pode ser colocado em um paciente pequeno, da mesma forma que um paciente grande não pode receber um fígado pequeno, por exemplo, porque vai gerar incompatibilidade.
O que é levado em conta, então, para definir qual paciente vai receber a doação?
Os critérios variam de acordo com o órgão que a pessoa precisa receber. A maioria estabelece tipagem sanguínea, depois entram critérios de gravidade, de tamanho, peso e altura. Já no transplante renal, temos também a compatibilidade genética, que é fundamental para o sucesso da cirurgia.
Esse processo vai gerar um sistema de pontos, e de acordo com a pontuação, a pessoa vai receber o órgão.
Há algum órgão mais demandando nas filas de espera?
A fila varia de acordo com os anos. Temos uma fila maior para transplante de córnea e rim, porque várias doenças afetam esses órgãos de forma mais impactante. Por exemplo, a hipertensão e a diabetes aumentam os problemas de rim, que levam as pessoas a terem doenças que afetam o órgão. O rim hoje é um dos mais afetados por doenças crônicas, inclusive, por isso temos uma demanda considerável sobre ele.
Após o procedimento, quais cuidados tomar?
O pós-operatório do transplante é muito individualizado. Temos que levar em conta que cada paciente terá um motivo diferente para estar nessa lista. Por exemplo, se a pessoa tem pressão alta e o rim parou de funcionar porque não cuidou da pressão, mesmo após ela receber o transplante, a doença de hipertensão continua, e se não tratada adequadamente, ela vai perder o rim de novo. Ou seja, cuidar da doença que causou o problema é fundamental.
Quais os desafios de conscientizar a população sobre a importância de ser um doador?
Esse é um tema difícil de ser resolvido, é complexo e nem todos gostam de falar sobre o momento da própria morte. O que precisamos levar em conta é que a chance de entrarmos na fila de quem precisa de transplante é muito maior do que de um dia ser doador. Se a pessoa pensar por esse lado, se um dia ela estiver na lista, ela gostaria de receber a doação do órgão? Um paciente que está com uma doença terminal, que só precisa de um doador para voltar à vida normal. Isso é uma forma de avaliar a situação.
Transplantes no DF
Número de procedimentos realizados na capital do país entre janeiro e junho nos últimos anos
Rins
2020
Transplantes: 28
Fila de espera: 592
2021
Transplantes: 48
Fila de espera: 507
2022
Transplantes: 45
Fila de espera: 600
Córnea
2020
Transplantes: 111
Fila de espera: 395
2021
Transplantes: 172
Fila de espera: 375
2022
Transplantes: 174
Fila de espera: 374
Fígado
2020
Transplantes: 53
Fila de espera: 10
2021
Transplantes: 48
Fila de espera: 12
2022
Transplantes: 49
Fila de espera: 14
Coração
2020
Transplantes: 8
Fila de espera: 16
2021
Transplantes: 12
Fila de espera: 24
2022
Transplantes: 12
Fila de espera: 28
Fonte: painel do transplante do DF, dados coletados no fim de agosto