ELEIÇÕES 2022

Negros e pardos são maioria entre os candidatos no Distrito Federal

Ao menos 35 políticos mudaram autodeclaração de branco para pardo desde os dois últimos pleitos. Justiça eleitoral pode investigar possíveis fraudes

Ana Isabel Mansur
postado em 02/09/2022 05:51 / atualizado em 02/09/2022 05:52
Fernando Nascimento: democracia exige luta antirracista -  (crédito: Arquivo pessoal)
Fernando Nascimento: democracia exige luta antirracista - (crédito: Arquivo pessoal)

Nestas eleições, os negros são maioria entre os candidatos do Distrito Federal. Entre as 881 candidaturas registradas na Justiça Eleitoral, 50,7% são de pessoas pretas e pardas, contra 45,4% políticos brancos. A maior parte dos candidatos negros (72,5%) busca uma vaga na Câmara Legislativa (CLDF) e apenas 1,8% tenta alcançar o Executivo local, como governador ou vice-governador. Apesar da baixa proporção de pretos e pardos entre os que desejam ocupar o Palácio do Buriti em 2022, a quantidade (5) é a maior dos últimos anos: nas eleições anteriores, apenas um candidato se autodeclarou negro, enquanto em 2014, todos se identificaram como brancos.

Embora sejam maioria neste ano, o número de pretos e pardos entre os registros eleitorais foi maior em 2018, quando corresponderam a 55,5% das candidaturas. Na comparação com 2014, em que 48% dos registros foram de negros, a participação desses candidatos na política cresceu em 2022. A maior presença deles na política é essencial para garantir o pleno funcionamento da democracia, conforme aponta Deise Benedito, fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra e do Fórum Nacional de Mulheres Negras. "Existem candidatos e candidatas muito experientes e com atuação renomada nas lutas da população negra", aponta a especialista, graduada em direito, com especialização em relações étnico-raciais, gênero, segurança pública e sistema prisional.

  • Deise Benedito questiona autodeclaração racial Pedro França/Agência Senado

Ser maioria entre os candidatos não garante que a população negra será proporcionalmente representada na política. É o que aponta Fernando Nascimento dos Santos, professor do Iesb e da Unieuro, advogado criminalista e doutorando em direitos humanos e cidadania pela Universidade de Brasília (UnB). "A CLDF é um bom exemplo da desigualdade racial. Basta olhar as fotografias dos atuais deputados distritais (para perceber) que as características fenotípicas, por si só, denunciam que ainda há muito por fazer em relação ao acesso das mulheres e de pessoas negras. É um cenário que nos envergonha, se levarmos em consideração que mais da metade da população brasileira se autodeclara preta ou parda, enquanto a Câmara Distrital é ocupada majoritariamente por homens brancos", critica o especialista. Em 2018, dos 24 parlamentares eleitos para a CLDF, apenas três eram mulheres e 10 se definiram como negros.

Mudanças

Dos 447 candidatos negros nas eleições deste ano, ao menos 35 alteraram a autodeclaração racial entre pleitos. São candidatos que se registraram como brancos em 2018 ou 2014, mas que, agora, se inscreveram na Justiça Eleitoral como pardos. Deise Benedito condena a atitude, a qual chama de "afroconveniente." "Muitos desses candidatos jamais atuaram no combate à discriminação racial, nem se posicionaram contra o racismo institucional e a intolerância religiosa. Muitos ocuparam cargos públicos sem jamais apresentar nenhuma proposta de combate às desigualdades raciais. Ao burlarem (o sistema racial), se declaram sem ética nem compromisso com a coisa pública, o que é altamente nocivo à democracia, que prima pela transparência, verdade e coerência."

As mudanças, contudo, não podem ser analisadas unicamente sob o aspecto de fraude. "É preciso separar o joio do trigo", explica Fernando Nascimento. "Em uma sociedade racista como a brasileira, em que a 'brancura' sempre foi entendida como ideal de civilização, as pessoas negras, durante muito tempo, tinham vergonha de reconhecer a própria 'negritude'. Isso tem mudado, e cada vez mais as pessoas negras se autodeclaram pretas ou pardas."

O professor aponta que o problema está na conduta ilícita para fins eleitorais, por meio de má-fé e falsidade ideológica. "Cada caso tem de ser analisado concretamente. A questão racial é complexa. Nas políticas de cotas, em geral, a autodeclaração é o principal critério, que pode ser associado a outros, exatamente para afastar autodeclarações falsas e burlas ao sistema. Daí, por exemplo, as comissões de hétero-identificação que têm sido utilizadas com êxito nos programas de cotas das universidades públicas e nos concursos públicos", observa o advogado, defensor que os critérios para acesso às cotas raciais nas eleições sejam previamente estabelecidos pela Justiça Eleitoral, a fim de evitar fraudes.

O Tribunal Regional Eleitoral do DF (TRE-DF) não fiscaliza as autodeclarações raciais dos candidatos. Quando há denúncia de registros, o TSE julga os casos relacionados aos postulantes à Presidência da República. As demais candidaturas são julgadas pelas cortes regionais.

Cotas

Não há exigências acerca da quantidade mínima de candidaturas negras hoje no Brasil, como é o caso do registro de mulheres. A determinação contribuiria na redução do descompasso para a representação branca na política. "Não é possível falar em democracia numa sociedade sustentada no racismo. Então, a facilitação do acesso aos cargos eletivos, por meio de políticas inclusivas, é um passo imprescindível nessa luta", defende o advogado Fernando Nascimento dos Santos.

Para garantir a cidadania das pessoas negras, as candidaturas devem andar lado a lado com modelos antirracistas. "É fundamental que o Estado crie e amplie mecanismos contra ações discriminatórias, que reproduzem as desigualdades entre negros e brancos, por meio da implementação de politicas públicas, nas áreas mais sensíveis: moradia, transporte, saúde e educação", completa Deise, que é mestre em direito e criminologia pela UnB.

O caminho para as cotas raciais foi aberto pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2020, com mudança de orientação e estabelecimento de regras para possibilitar, ao menos, a distribuição proporcional dos recursos eleitorais para candidaturas de pessoas negras. "É preciso construir uma política de cota eleitoral clara, como já existe para as cotas de gênero, aliada a políticas de fomento e formação de candidaturas negras. Claro que essas ações não devem ser pensadas de forma isolada, mas associadas a outras políticas públicas que pensem o racismo como um problema estrutural da sociedade brasileira", completa Fernando Nascimento.

 

Negros e pardos são maioria entre os candidatos no Distrito Federal
Negros e pardos são maioria entre os candidatos no Distrito Federal (foto: CB/DA PRESS)

Negros e pardos são maioria entre os candidatos no Distrito Federal
Negros e pardos são maioria entre os candidatos no Distrito Federal (foto: CB/DA PRESS)

Colaboraram Arthur de Souza e Edis Henrique Peres

 

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Um laboratório

“Uma decisão do TSE definiu que a divisão do fundo eleitoral e do tempo de tevê deve ser proporcional ao total de candidatos negros. Cada partido ou coligação deve fazer o cálculo para fazer essa distribuição proporcionalmente. É algo inédito: o TSE tomou essa decisão em 2020, mas ela não valeu para as eleições municipais daquele ano e estará em vigor, pela primeira vez, em 2022. Os diretórios estaduais dos partidos políticos deverão informar, nas prestações de contas enviadas à Justiça Eleitoral, o total de recursos do fundo partidário destinado, especificamente, para as candidaturas de mulheres e pessoas negras nas eleições deste ano, que serão o laboratório dessa decisão.”

Miguel Dunshee, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF)

Investigação

O Ministério Público Eleitoral recomendou, no início do último mês, que os candidatos às eleições de 2022 preencham o formulário de registro corretamente, em especial na autodeclaração racial. Em caso de disparidade, é necessária a retificação dos dados e, se for constatada fraude, é possível investigação relativa a crime de falsidade ideológica eleitoral, tipificado no art. 350 do Código Eleitoral.

FRASE

“É preciso construir uma política de cota eleitoral clara, como já existe para as cotas de gênero, aliada a políticas de fomento e formação de candidaturas negras"

 

Fernando Nascimento, advogado e professor do Iesb e da Unieuro

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